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Coluna
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Os índios, nossos mortos

O Brasil, país racista e preconceituoso, sempre demonstrou profundo desprezo pelos povos indígenas

Índios protestam na marquise do Congresso Nacional em dezembro de 2015
Índios protestam na marquise do Congresso Nacional em dezembro de 2015José Cruz (Agência Brasil)

O recente episódio envolvendo a indicação, e posterior desistência, para o comando da Fundação Nacional do Índio (Funai) de um general identificado com a ditadura militar é bastante emblemático do tratamento que o Estado dispensa à população nativa brasileira. A escolha do nome do general Sergio Roberto Peternelli para o cargo deveu-se ao Partido Social Cristão (PSC), ligado à Assembleia de Deus, e que tem entre seus líderes o pré-candidato à Presidência da República, deputado federal Jair Bolsonaro (RJ), de claras tendências fascistas. O PSC defende a Proposta de Emenda Constitucional 215 que transfere do Executivo para o Congresso a competência exclusiva para aprovar a demarcação de terras indígenas e o direito de retificar aquelas já homologadas. O que significaria, na prática, o fim das reservas.

O descaso com a questão indígena é a principal causa da violência. De forma ilegal, alicerçados na força das armas e da corrupção, os fazendeiros avançam pelas florestas, transformándo-las em lavoura e pasto

O Brasil, país racista e preconceituoso, sempre demonstrou profundo desprezo pelos povos indígenas. O governo da presidente Dilma Rousseff, pressionado por interesses os mais diversos, foi responsável pelo pior índice de demarcação de terras de todo o período democrático: em cinco anos, ela homologou um total de 3,3 milhões de hectares -o governo Itamar Franco, em apenas dois anos, homologou 5,4 milhões de hectares. O recorde de demarcações pertence ao governo Fernando Henrique Cardoso, que, em dois mandatos, homologou um total de 42 milhões de hectares. O descaso com a questão indígena é a principal causa da violência no campo. De forma ilegal, alicerçados na força das armas e da corrupção, os fazendeiros avançam pelas florestas, derrubando-as para transformá-las em lavoura e pasto. O Brasil aparece como o campeão absoluto de desmatamento no mundo, com perda média de 984 mil hectares de florestas por ano, segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO).

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O resultado desse conflito histórico pode ser medido em números: calcula-se que quando os primeiros homens brancos aqui aportaram havia cerca de 5 milhões de índios. Hoje, mais de 500 anos depois, eles não passam de 850 mil, segundo dados do IBGE. Caçados como animais, mortos em guerras bacteriológicas, expulsos para longe de seus domínios, confinados em pequenas reservas, os indígenas foram vítimas de um verdadeiro genocídio, que extinguiu etnias, línguas, culturas. E, o mais inacreditável, em pleno século XXI continuam sendo perseguidos e tendo seus direitos básicos desrespeitados, por conta da omissão do Estado, que no Brasil, antes de ser expressão de aspirações coletivas, é fortaleza de interesses privados.

O suicídio entre jovens indígenas ocorre em um contexto de discriminação, marginalização, colonização traumática e perda das formas tradicionais de vida

De acordo com relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), em 2014 foram assassinados 138 índios, a maioria decorrente de conflitos com invasores de seus territórios. A omissão do Poder Público foi também responsável pelo falecimento de 21 índios adultos por falta de acesso ao sistema de saúde – uma doença comum como a gripe, por exemplo, é responsável por 15,3% das mortes entre índios adultos. A mortalidade infantil entre a população indígena atinge índices inaceitáveis: 41,9 crianças mortas por mil nascidas vivas, quando a média nacional é a metade, 22 crianças mortas por mil nascidas vivas. Além disso, números da DataSUS mostram que a principal causa de óbito entre crianças indígenas de até 9 anos de idade é a desnutrição – esse grupo representa, sozinho, 55% do total das mortes por desnutrição no Brasil.

Menosprezados, desassistidos, abandonados, o índice de suicídio entre os indígenas alcança proporções alarmantes. Dados recolhidos no Mapa da Violência do Ministério da Saúde expõem que enquanto a média do Brasil é de 5,3 suicídios por 100 mil habitantes, a incidência entre os indígenas atinge uma média de nove suicídios para cada 100 mil habitantes, podendo chegar, em alguns municípios da região Norte, a 30 suicídios por 100 mil habitantes. Um estudo da ONU afirma que o suicídio entre jovens indígenas ocorre em um contexto de discriminação, marginalização, colonização traumática e perda das formas tradicionais de vida, que forjam um sentimento de isolamento social.

No Brasil, os índios ocupam o último lugar na escala social. São os mais invisíveis dos invisíveis, os mais discriminados entre os discriminados, os mais ultrajados entre os ultrajados. Estão mortos, antes mesmo de morrer.

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