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A violência que não cessou durante os Jogos Olímpicos do Rio

Tiroteios nas periferias se intensificaram e ao menos 31 morreram, segundo a Anistia Internacional

Agentes da Força Nacional, durante operação no Complexo da Maré no dia 11 de agosto.
Agentes da Força Nacional, durante operação no Complexo da Maré no dia 11 de agosto.Felipe Dana (AP)
Felipe Betim

Os moradores da favela Bandeira 2 estão desolados com os últimos acontecimentos. No começo de agosto, enquanto o mundo todo olhava para os Jogos Olímpicos, policiais militares entraram nesta pequena comunidade no norte do Rio de Janeiro, de cerca de 3.000 habitantes, em busca de traficantes. Os amigos Juninho, de 11 anos, e César Soares dos Santos, conhecido como Beba, de 14, estavam brincando em cima de uma laje quando os agentes chegaram. "Os dois apanharam muito. Colocaram spray de pimenta nas partes íntimas do Beba e jogaram o Juninho de uma altura de três andares", conta o morador Maicon Silva, de 21, que disse ter testemunhado tudo. Juninho ainda está internado em estado grave no hospital Salgado Filho.

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Na mesma semana, na quinta-feira 11 de agosto, Beba seria alvo mais uma vez. Os policiais entraram de novo na comunidade após, segundo informou a PM na ocasião, serem informados de que "estaria havendo uma ação criminosa". A corporação assegura que houve troca de tiros com traficantes, enquanto os moradores relatam que já entraram atirando. Uma das balas encontrou Beba no caminho. "Na hora da confusão, da correria, o menino entrou no meu bar para se proteger. Quando vi, ele estava sangrando. Tinha levado um tiro bem aqui", conta Sandra Alves, de 36 anos, colocando a mão embaixo do coração. "Os agentes entraram e perguntaram onde estava a arma dele. Eu disse que não tinha arma nenhuma, que era só uma criança. Mas não adiantou. Ao invés de ajudarem, ficaram revirando o menino atrás de alguma coisa". Beba, tido como menino estudioso e querido entre os vizinhos, morreu.

Além de Beba, Matheus Amacio acabou morto na ação na Bandeira 2. A Polícia Militar disse que se tratava de um suspeito de participar do tráfico, mas isso não é o que sua mãe e outros moradores contam. "Ele tinha 15 anos, estava na escola e trabalhava em um mercadinho como ajudante", garante sua mãe, Danusa Amacio, de 37 anos. Caminhava em direção à casa de sua tia quando uma bala lhe acertou. "Eu mesma carreguei ele para o hospital", conta Danusa, que levava uma camiseta com a foto do filho durante um protesto dos moradores na quinta-feira, dia 18, que pedia "paz na Bandeira 2". Matheus já era casado e tinha três filhos pequenos. "Não sou contra ir atrás de bandido, mas os policiais já entram atirando. Não respeitam trabalhador ou criança. Só trazem desgraça", opina Paula Ribeiro, vice-presidenta da associação de moradores da Bandeira 2. "Esse foi o preço da Olimpíada pra gente".

Os relatos da comunidade compõem a cena cotidiana de uma guerra, travada nas periferias do Rio entre o Estado e facções criminosas, que não cessou durante os Jogos. Além da situação na Bandeira 2, tanto os vizinhos da Maré como do Complexo do Alemão e de outros locais relatam que as operações policiais não só continuaram antes e durante os Jogos, como também se intensificaram. Segundo dados da plataforma Fogo Cruzado, promovida pela Anistia Internacional, que reúne em tempo real as informações sobre violência, ao menos 31 pessoas morreram e outras 51 ficaram feridas em 95 tiroteios (5,9 por dia) registrados na região metropolitana do Rio entre os dias 5 e 21 de agosto. Na primeira semana do evento, entre os dias 5 e 12, um balanço feito pela Anistia mostra que, apenas neste período, 14 pessoas faleceram e 32 ficaram feridas em 59 tiroteios (8,4 por dia). Foi o dobro da semana anterior. O Instituto de Segurança Pública do Estado ainda não divulgou as cifras oficiais dos últimos meses. "Me surpreende que tenham sido feitas grandes operações durante o evento. Normalmente eles diminuem a ação durante grandes eventos justamente para não causar más noticias", opina Ignacio Cano, professor da UERJ e coordenador do Laboratório de Análises da Violência da mesma instituição.

Desse casos, o único que ganhou destaque durante os Jogos foi a morte de Hélio Vieira Andrade, de 35 anos, um policial militar de Roraima que integrava a Força Nacional, convocada para fazer a segurança da Olimpíada junto com o Exército. Em 10 de agosto, sua viatura entrou por engano na Vila do João, no Complexo da Maré. Traficantes abriram fogo e ele terminou morrendo — o Governo interino de Michel Temer declarou luto de três dias.

As mortes no complexo da Maré seguiram nos dias seguintes ao episódio de Andrade, quando forças de segurança entraram na comunidade para revidar. Segundo o canal de mídia comunitária Maré Vive, o saldo foram cinco pessoas mortas e vários baleados. Na sexta, o jornal Voz da Comunidade, do Alemão, noticiou a morte de Darlene da Silva Gonçalves, de 43 anos, frequentadora da zona, enquanto Regina Calheiro, de 61 anos, baleada, teve alta dias depois. Neste sábado, moradores de várias favelas cariocas se manifestaram na zona portuária do Rio após a hashtag #FomeDeViver circular pelas redes sociais.

Para os atletas e torcedores que o policial Andrade buscava proteger não houve grandes problemas de segurança — salvo alguns casos pontuais de assaltos, mas que não chegaram a ameaçar suas vidas. "O problema da segurança não é para os visitantes, mas sim para os moradores da cidade. Com o fim dos Jogos, ela vai se deteriorar ainda mais. O Estado do Rio está falido e já não haverá uma ajuda de três bilhões de reais do Governo Federal, como a que foi feita para os Jogos. Tampouco haverá a visibilidade internacional", prevê Cano.

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