Na fila da Caixa ninguém lê a revista ‘Piauí’
A alta na avaliação de Bolsonaro assusta os que defendem a democracia, mas faz o alerta sobre o flanco aberto quando não se tem firmeza e coragem para defender a população e a liberdade
Como um presidente que ofende mulheres, negros, tem arroubos golpistas e trata com desdém a morte de mais de 107.000 pessoas por covid-19 pode gozar e elevar seu prestígio perante a população? Essa é a pergunta que rodou o Brasil refratário ao presidente Jair Bolsonaro depois do resultado da pesquisa Datafolha desta sexta. O instituto mostra uma queda na rejeição ao Governo de Bolsonaro em plena pandemia. De 44% em junho para 34% este mês. Nesse período, o presidente intensificou a defesa da hidroxicloroquina, soltou frases ora corrosivas ora desprezíveis sobre as mortes por coronavírus, e seu aliado Fabrício Queiroz foi preso, depois de ser encontrado escondido em imóvel do então advogado da família Bolsonaro. Nem mesmo as investigações que avançam contra seu filho Flávio afetaram a imagem do presidente.
Bolsonaro vive um momento Teflon, em que nada cola, coincidindo com a bem-sucedida operação para liberar recursos via auxílio emergencial. Sim, muitas falhas nessa entrega, que chocam mais a nós que aos destinatários. Ao fim e ao cabo, metade das famílias brasileiras se beneficiaram do auxílio durante a pandemia, garantindo ao menos a comida e o pagamento de alguns boletos. E dinamizou a economia em regiões pobres, principalmente no Nordeste. Foi ali que o presidente teve um notável ganho de popularidade, segundo o Datafolha, saltando de 27% de aprovação em junho para 33% em agosto. Entre os desempregados, veio a gratidão pela boia de salvação de 600 reais que apareceu no momento mais assustador do Brasil. Ali Bolsonaro passou de 24% para 36% de apoio.
Se esta melhora é um romance da pandemia ou uma promessa de amor eterno ao presidente, só o tempo vai mostrar. Uma coisa é preciso ter em mente. Quem estava na fila da Caixa para conseguir os 600 reais certamente não lê a revista Piauí. Não sabe e nem alcança o peso do que é o presidente ter tido o ímpeto de enviar tropas ao Supremo Tribunal no mês de maio, como contou a jornalista Mônica Guglielmo na reportagem Vou intervir!, publicada na edição deste mês. Não acompanha as boiadas de Ricardo Salles, e as três mudanças no ministério da Educação lhe dizem pouco. Suas escolas mal têm torneira na pia e professor.
Tosco, autoritário, misógino e agressivo, Bolsonaro tem se adaptado à cadeira de presidente de República segundo as circunstâncias. Foi assim quando subiu no cavalo selado que corria durante o ano eleitoral. O mercado queria um Estado menor, privatizações, reformas. O antipetismo abraçou a tese sem pestanejar. Veio então Paulo Guedes, o calendário de privatizações, e a ode ao teto de gastos. Veio também um ex-juiz da Lava Jato para coroar a luta contra a corrupção...
Mas ao longo do seu Governo, o Bolsonaro em seu estado bruto atirou desmedidamente. Contra o meio ambiente, contra a valorização de mulheres, a educação, a cultura, e contra vários ministros. Perdeu ao mão e parte do apoio de quem se chocou com seus embates diários com o Congresso, as queimadas na Amazônia e suas conexões obscuras com redes de fake news. Foi queimando o próprio filme, seja pela sua incontinência verbal, pelos desmandos ditatoriais ou pela gestão incompetente de áreas caras ao brasileiro, como a educação e a preservação das florestas. Em agosto do ano passado, quando os incêndios anunciados por fazendeiros em Novo Progresso (PA) tomaram o mundo, sua avaliação positiva ficou em 29%, contra 38% ruim ou péssimo. Foi perdendo também apoio do capital internacional e o alerta acendeu no Planalto.
Ironicamente, a pandemia trouxe a Bolsonaro um novo cavalo selado para se agarrar até 2022. A possibilidade de irrigar a conta de 50 milhões de brasileiros vulneráveis caiu como uma luva. Atenuou perdas e adiou a fatura que deve chegar. Ao mesmo tempo, baixou a guarda para o Centrão, e para dogmas que abraçou na campanha. Às favas com teto de gastos, liberalismo radical, com a guerra contra seu antigo partido, o PSL, e com as privatizações. Chamou o presidente mais impopular da democracia, Michel Temer, para aprender a dosar sua verborragia e a lidar com a crise autoinfligida por suas aparições desmedidas. E chegou aqui, com um balão de oxigênio que agora assusta quem teme o crescimento da extrema direita no Brasil, espelhada com uma eventual reeleição de Trump. Nem ter ultrapassado a marca terrível dos 100.000 mortos por covid-19 foi capaz de arruinar sua imagem perante a população. Metade do Brasil nem acha que foi culpa dele.
Há quem diga que esta alta de popularidade estava precificada, e tem vida curta. Afinal, de um presidente sem coração não há como extrair um plano que abarque os mais vulneráveis, que são a maioria do Brasil, em longo prazo. Mas é preciso admitir a perspicácia de Bolsonaro com o jogo do poder. Assim como foi necessário identificar em Eduardo Cunha a destreza na presidência da Câmara para alcançar seus (questionáveis) objetivos.
Reconhecer que o presidente tem somado pontos e vitórias parece muito difícil para uma ala no Brasil, que subestima Bolsonaro. Para muitos, ele é repulsivo por seus retrocessos, portanto, deveria sair o quanto antes. Mas Bolsonaro já era um dos deputados mais votados do Brasil bem antes de pensar em ser presidente e é preciso lembrar sempre. Quase meio milhão de eleitores votou nele em 2014, quatro vezes mais que na eleição anterior. Bolsonaro é uma parte considerável do Brasil. Entender e pacificar-se com seus méritos é sair da fase de negação. Ajuda a reconhecer, inclusive, que ele também encara derrotas.
Muitas vozes têm se erguido para interromper seu ambições obscuras a despeito de encarar linchamentos virtuais, ameaças, e do jogo sórdido que empreende a partir do Planalto. Há vozes que se sobressaíram de maneira bem sucedida contra seu Governo. Ora de movimentos sociais, ora de ministros da Suprema Corte, ora na figura de ativistas e jornalistas, e até do youtuber Felipe Neto. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, também peitou muitas vezes o presidente, embora tenha se saído muito mal numa entrevista recente ao Roda Viva em que minimizou os mais de 50 pedidos de impeachment que estão em sua mesa por não ver “nenhum crime do presidente”. Um soco no estômago para quem engole diariamente ataques e mentiras graves que saem da boca do mandatário, como insinuar que quem morreu de covid-19 é porque não tomou cloroquina, ou que os governadores e prefeitos são culpados pela crise no Brasil. Minimizar o papel que ele exerce e ao que induz é ser conivente com a deterioração do frágil pacto social brasileiro, empreendida em seu Governo.
Bem ou mal, Bolsonaro tem ativado um ecossistema de democratas que percebeu o fosso em que o Brasil se encontra, não só pela crise sanitária, como pela fragilidade de valores que sustentam o país. Coragem e ousadia para pensar estratégias mais definitivas que ampliem o princípio democrático no país são decisivas neste momento e precisam urgentemente se multiplicar. Não para derrubar Bolsonaro amanhã, mas para construir pontes, consensos e ampliar essa rede de proteção da democracia, com ações efetivas, que podem levar mais anos do que se supõe —até a possibilidade de reeleição de Bolsonaro está na mesa.
Não cabem mais hesitações para erguer a voz contra quem não pensa em alcançar todos os brasileiros por igual, em vez de segregá-los. Essa percepção cresce, e não por acaso, a mesma sexta-feira que começou com a notícia das loas ao presidente autoritário, terminou com um encontro virtual “histórico” entre integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e o ministro Gilmar Mendes. Num zoom diante de 800 ouvintes, Gilmar se emocionou ao reconhecer as fraturas expostas do Brasil que exigem muito mais esforço do que se supunha até pouco tempo para reconhecer o Brasil como uma nação digna. Propôs uma Lei de Responsabilidade Social, a exemplo da Lei de Responsabilidade Fiscal, uma ideia para, quem sabe, num futuro próximo, colocar a vida das pessoas à frente da economia em situações críticas.
A pandemia jogou na cara dos democratas que a Constituição de 1988 tem valido muito mais para um quadrilátero e ganhar mais vozes em defesa dessa conquista requer uma vigilância e uma união que não existiram até aqui. É nesse flanco que o presidente tem orquestrado uma política da bolacha de água e sal. Para quem vive à mingua, uma cream cracker é o banquete dos deuses.
Os resultados do Datafolha estão aí para lembrar aos defensores da democracia que também estamos no topo da pirâmide do Brasil, este país governado por ricos para atender aos mesmos ricos. Boa parte da base mal sabe a diferença entre o que foi a ditadura e autoritarismo e a democracia atual. Para muitos, a distância entre os dois regimes é apenas um risco de giz no chão que se apaga a cada invasão policial injustificada, ou nos soterramentos de barracos improvisados. O caminho é longo e árduo. Mas pelo Brasil, mais justo como os que se permitem sonhar, vale a pena.
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