Crise escancara mudança de rumo de Bolsonaro, disposto a rifar o que sobrou da agenda liberal
Presidente reafirma respeito a teto de gastos, mas pressões para aumento de despesas para garantir retomada seguem latentes. Guedes é criticado por falta de plano para o pós-pandemia
O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta quarta-feira que o Governo manterá o compromisso com o teto de gastos públicos ―que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação ― e que buscará soluções para destravar a economia brasileira. O pronunciamento acontece um dia depois de dois secretários da equipe econômica pedirem demissão e em meio a uma disputa no Congresso e dentro do próprio Executivo para driblar a regra. Uma ala do Governo defende um aumento de gastos com obras públicas e outros investimentos como forma de reaquecer a atividade econômica impactada pela pandemia do coronavírus e fortalecer Bolsonaro na disputa eleitoral de 2022. “Nós respeitamos o teto dos gastos, queremos a responsabilidade fiscal e o Brasil tem como ser um daqueles países que melhor reagirá à questão da crise”, afirmou o presidente, ao lado dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, e ministros.
O pronunciamento foi relâmpago e pouco detalhado, num termômetro da encruzilhada em que Bolsonaro está. O presidente se mostra disposto a respaldar publicamente o ministro da Economia, Paulo Guedes, que cobrou um compromisso político com a agenda liberal. Mas, na prática, não quer contrariar nem os militares nem os congressistas que gostariam de flexibilizar as amarras e gastar mais.
A ofensiva sobre a regra do teto e a queda de dois secretários especiais do Ministério da Economia Salim Mattar (Desestatização) e Paulo Uebel (Desburocratização) apenas escancaram as divergências internas dentro doGoverno que ficaram ainda mais escancaradas depois da pandemia. No entorno de Bolsonaro, os pedidos por aumento de despesas e furos na regra do teto dos gastos tem sido cada vez mais constantes. O próprio senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente, afirmou que Guedes “vai ter que dar um jeito de arrumar mais um dinheirinho” para obras de infraestrutura.
As baixas desta terça-feira se somam às saídas nas últimas semanas de Mansueto Almeida (do Tesouro Nacional), de Caio Megale (da diretoria de programas da Secretaria Especial da Fazenda) e de Rubem Novaes, que anunciou a saída da presidência do Banco do Brasil. O ministro da Economia parece por momento ainda firme no cargo, mas já não esconde sua irritação com a ala em que se empenha em flexibilizar o teto de gastos indo contra sua cartilha liberal e de redução de despesas. Nesta terça-feira, Guedes subiu o tom e afirmou que os “ministros fura-teto” levam Bolsonaro para uma zona cinzenta. “Os conselheiros do presidente que estão aconselhando a pular a cerca e furar teto vão levar o presidente para uma zona sombria, uma zona de impeachment, de irresponsabilidade fiscal. O presidente sabe disso, o presidente tem nos apoiado”, afirmou.
No pronunciamento, Bolsonaro tentou apaziguar o clima de tensão, que já preocupa o mercado financeiro e investidores. Prometeu, sem dar qualquer detalhe, avanços tanto na política de privatizações de empresas públicas como na apresentação da reforma administrativa, que mexe na remuneração do funcionalismo público e que ele mesmo resolveu engavetar. Essas justamente foram as agendas que levaram às demissões da véspera, já que os dois secretários estavam insatisfeitos com a paralisia em suas áreas. Sob o comando de Salim, nenhuma estatal federal de controle direto foi privatizada. Nem a venda da Eletrobras, a principal aposta para este ano, andou. O Governo Bolsonaro, inclusive, criou uma nova estatal, a NAV, responsável pela navegação aérea.
Já a reforma administrativa, que estava sendo tocada por Uebel, chegou a ser discutida no fim do ano passado, mas o presidente recuou em meio a turbulências e protestos sociais na América Latina, principalmente no Chile. O temor era de que a proposta acabasse sendo rechaçada pela sociedade e pelos parlamentares. Neste ano, houve uma promessa de que um texto seria apresentado, mas o plano foi adiado, com Bolsonaro temendo uma reação contrária dos servidores.
Nesta quarta, o dólar fechou em alta ante o real, afetado por incertezas sobre a capacidade de a equipe econômica tocar pautas reformistas. Apesar de não ter um histórico político ligado à economia liberal, no começo do “casamento” com o Guedes, as promessas de uma agenda liberal e reformista eram grandes e animaram o mercado. Ainda na campanha eleitoral, o futuro ministro da economia afirmava que arrecadaria 1 trilhão de reais com privatizações de empresas públicas e que a realização de vendas de imóveis chegaria a outro trilhão. Prometeu ainda que tinha a receita certa para reequilibrar as contas públicas e zerar o déficit já no primeiro ano do mandato de Bolsonaro. Passado mais de um ano e meio de Governo, os planos nunca decolaram —dentro do ministério não faltam vozes que critiquem a falta de coordenação de Guedes— e uma crise sanitária sem precedentes cruzou o caminho. Nada da agenda vingou, exceto a reforma da Previdência em 2019, que já havia sido amplamente discutida no Governo do ex-presidente Michel Temer e encampada pelo Congresso. Mas, desde então, reformas almejadas, como a administrativa, e as privatizações não emplacaram. Segundo analistas, faltou desde o início qualquer empenho do presidente em construir espaço político para fazer justiça a essa retórica econômica bastante ambiciosa.
Na avaliação de Rafael Cortez, sócio e cientista político da Tendências Consultoria, as saídas das equipes e o descolamento da agenda retratam o problema originário do Governo Bolsonaro de falta de disposição política e articulação para a implementação dessa retórica liberal. “Agora com essa maior fragilidade política do presidente, com queda de popularidade, foi reforçado esse cenário de pouca disposição para fazer o encaminhamento da agenda econômica liberal. Ele agora quer minimizar a rejeição por meio de apostas na transferência de renda”, explica.
Ainda segundo Cortez, a pandemia fez a PEC dos gastos, hoje no centro da disputa política, perder legitimidade. “Ela encurtou a vida política do teto, já que aumentou a pressão para retirar algumas despesas do seu guarda-chuva”, explica. Para o cientista político, a equipe econômica carece de um novo rumo para se organizar nesse quadro pós-pandemia, quando até organismos como o FMI (Fundo Monetário Internacional) têm dado o braço a torcer sobre a necessidade de aumentar o gasto público. “O Governo ainda não comprou a ideia que o cenário mudou e que a emenda do teto precisa ser flexibilizada para dar conta desse momento”, opina.
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