Teresa Caldeira: “A desigualdade não aumentou, mas com a pandemia se tornou mais evidente”
Antropóloga e pensadora urbana, esta especialista na cidade de São Paulo reflete sobre a capacidade de adaptação à pandemia demonstrada pelos moradores de muitas periferias
O confinamento diante do coronavírus não é vivenciado da mesma forma em um amplo apartamento de San Francisco e em uma minúscula moradia de favela brasileira. Quem sabe muito bem disso é Teresa Caldeira (São Paulo, 1954), pensadora urbana que passou seus 30 primeiros anos em São Paulo e agora continua pesquisando a transformação social da cidade a partir da Universidade da Califórnia em Berkeley, que a premiou em 2012 com o Faculty Mentor Award, um reconhecimento aos professores mais valorizados. “Na periferia, as emergências são constantes, e o vírus é mais uma”, explica a antropóloga, autora de vários livros, entre eles Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo (Editora 34/Edusp, 2000), que ganhou o Senior Book Prize. Depois de dar uma palestra no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, a professora reflete por telefone, de Berkeley, sobre a capacidade dos habitantes das periferias de se adaptar às mudanças.
PERGUNTA. Por que o confinamento é diferente em duas cidades como San Francisco e São Paulo?
RESPOSTA. Em San Francisco, quase todos têm respeitado o confinamento. Nas cidades do sul global, como São Paulo, tem sido muito diferente. A maioria vive em espaços densamente povoados, em casas pequenas, e não tem possibilidade de se isolar. Sobrevivem da economia informal, não podem ficar em casa.
P. As medidas contra o coronavírus são iguais para todos?
R. Foram pensadas para quem tem uma casa e pode se isolar, lavar as mãos toda hora, trabalhar pela Internet... Essa política não pode ser aplicada nas cidades do sul global. Os migrantes da Índia caminharam durante dias para ir para outro lugar porque sabiam que no confinamento não poderiam sobreviver. Muitas comunidades dessas áreas procuraram, por conta própria, modelos alternativos frente ao coronavírus.
P. Por exemplo?
R. Na favela de Paraisópolis, em São Paulo, pensaram na prevenção de uma forma distinta. Lá você não pode dizer para uma família que vive em um espaço pequeno que ela precisa se isolar. O que os moradores fizeram foi pensar como uma unidade: ninguém estava confinado, as pessoas continuaram se movendo, mas criaram um sistema para saber onde estavam os casos. Havia um representante para cada rua que perguntava a todos os moradores. Quando identificavam um caso, encaminhavam-no para o sistema de saúde. Também isolaram infectados e idosos em escolas, que estavam vazias, e tanto o atendimento como a comida foram feitos pelas pessoas do bairro. Geraram emprego local, isolaram as pessoas e monitoraram o bairro. Pensaram em soluções além das oficiais. A taxa de contágio lá, onde há 70.000 habitantes, são muito mais baixas do que em outras áreas da cidade.
P. O vírus mostrou a desigualdade das cidades?
R. São Paulo é uma das cidades mais desiguais do mundo, mas agora isso é evidente até para quem não queria pensar nisso. A desigualdade não aumentou, mas foi vista de forma mais evidente.
P. Isso ocorre apenas nas cidades do sul?
R. Não. As cidades do norte são desiguais, mas de outra forma. Nos EUA, a pandemia coincidiu com a onda de protestos contra o racismo que levou à consciência pública a imensa desigualdade racial do país. A morte de George Floyd por asfixia é como uma metáfora da pandemia: ele repetiu dez vezes “não consigo respirar” em um momento em que milhares de pessoas morriam por não conseguir respirar. Foi uma situação forte que gerou uma mudança. E também houve uma mudança no Brasil com a evidência da desigualdade, embora Bolsonaro a ignore.
P. Uma cidade é democrática se tem grandes diferenças entre os bairros ricos e pobres?
R. A democracia convive com a desigualdade. Não acho que se possa dizer que a democracia produz igualdade, mas acredito que oferece mais condições para que os movimentos sociais tentem reduzir a desigualdade. É mais fácil tentar lutar contra a desigualdade em uma democracia do que em um regime autoritário.
P. As cidades são projetadas para as mulheres?
R. Nunca foram. [As mulheres] sempre mantiveram uma situação ambígua com o espaço público da cidade moderna. São assediadas e não têm as mesmas possibilidades para se mover. No metrô do Rio de Janeiro há vagões só para elas.
P. Que mudanças urbanísticas as mulheres promovem?
R. Nas periferias, há uma geração jovem de mulheres que descobriu o feminismo e está muito envolvida em movimentos como o MeToo. Estão dispostas a criar outro tipo de vida. No Brasil, as mulheres mudaram imensamente suas vidas em poucas décadas. Se você observa as moradias, vê que as famílias nucleares ―pai e mãe com filhos― representam menos de 50%. Há muitas mulheres que preferem ter filhos sozinhas antes de formar um casal. Um dos motivos é que há muita violência machista no lar. Em algumas áreas da periferia de São Paulo, 60% das mulheres que têm filhos não vivem com o pai de seu filho. É uma questão da cultura popular urbana. E a reação foi vista em quem apoia Bolsonaro: uma masculinidade que se sente atacada e reage de forma violenta.
P. Como a falta de uma rede de transporte público afeta uma cidade?
R. Ela é fundamental para um espaço público democrático. Os EUA têm muitas cidades sem transporte público, os subúrbios não têm... Embora exista um movimento para construir alternativas: San Francisco, por exemplo, fechou parte da Market Street, uma das principais avenidas, para os carros, ela só pode ser usada por bicicletas e ônibus.
P. O coronavírus mudará as cidades para melhor?
R. Não sei como as cidades vão mudar. Haverá mudanças importantes, mas não me atrevo a dizer como vão ocorrer. É importante que as pessoas comecem a pensar em alternativas. Não é porque a cidade é assim que ela tem de continuar sendo assim. Como tornar São Paulo menos desigual? O que podemos fazer para que a periferia da cidade se transforme em um espaço de vida alternativa? Se a periferia se organizar, pode ser ainda mais interessante do que os bairros do centro. É preciso estar aberto a propostas.
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