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Pandemia de coronavírus
Coluna
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Os leitos de covid-19 e o aborto

A imagem do leito ocupado por uma mulher que fez aborto pode ajudar as pessoas de curta imaginação em aproximar-se de outra maneira a essa questão

Protesto em defesa do aborto legal nos EUA, em maio de 2019.
Protesto em defesa do aborto legal nos EUA, em maio de 2019.JAMES LAWLER DUGGAN (Reuters)
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FILE PHOTO: Naomi Connor, Co-Convener of Alliance for Choice poses with the recommended and safe medication that women in Northern Ireland are being denied. Northern Irish women seeking an abortion have been told they must take an 8-hour freight ferry to England despite the lockdown,  while the regional government resists pressure to offer abortions locally and the coronavirus disease (COVID 19) pandemic stops flights, Belfast, Northern Ireland, April 7, 2020. REUTERS/Jason Cairnduff/File Photo
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“O aborto é uma questão de saúde pública”, dizem os pesquisadores. A tese parece abstrata, pois como uma prática criminalizada poderia ser uma necessidade de saúde pública? A pandemia de covid-19 é pedagógica. Porém, a pedagogia é de horror: segundo a Organização Mundial de Saúde, todos os meses centenas de milhares de mulheres procuram os serviços de saúde para cuidados de aborto incompleto. Na Argentina, estima-se que são 3.330 mulheres; no Chile, 1.522; na Colômbia, 7.778; no México, 18.285. Segundo o Instituto Guttmacher, 760.000 mulheres na América Latina e Caribe buscam os serviços de saúde por complicações de aborto inseguro a cada ano: são 63.000 leitos a cada mês. Para cada mulher que chega a um hospital por aborto incompleto, o leito pode vir a ser ocupado duas vezes por ela: para os cuidados por aborto e pelo risco de adoecimento por covid-19.

A questão do aborto é colonizada por afetos patriarcais: a mulher que aborta seria leviana ou irresponsável, dizem os moralistas. Os afetos convocados pelas próprias mulheres são ignorados por quem tem o poder de criminalizar os corpos. Elas abortam porque precisam cuidar de si e de suas famílias, elas abortam e sentem alívio. A imagem do leito ocupado por uma mulher que fez aborto pode ajudar as pessoas de curta imaginação em aproximar-se de outra maneira à questão do aborto: se fosse legal e seguro, uma mulher receberia medicamentos e faria, sozinha, o aborto em casa. O leito estaria desocupado para o moralista cuidar de sua própria mãe, pai, avó ou avô, ou de si mesmo. Regra geral, não haveria razão para internação e o procedimento poderia ser acompanhado por enfermeiras ou técnicas de enfermagem por sistemas digitais de telesaúde. Seria seguro, barato, e os abortos não ocupariam leitos emergenciais para o cuidado da pandemia.

A criminalização do aborto faz exatamente o contrário. Além de adoecer as mulheres pelos métodos inseguros, as obriga a buscar os sistemas de saúde para não morrer. No Brasil, os dados da Pesquisa Nacional de Aborto de 2016 mostraram que cerca de meio milhão de mulheres por ano fazem aborto. Dessas, metade precisou ir ao hospital para finalizar o aborto. São 250.000 mulheres todos os anos que buscam os serviços de saúde. Em um cálculo simplório de distribuição do total de casos pelo número de meses de um ano, pode ser que 20.000 mulheres por mês ocupem leitos de hospital para finalizar um aborto inseguro. A verdade é que desconhecemos o impacto da pandemia na clandestinidade do aborto; o número pode ser ainda maior dada a fragilidade dos serviços de saúde reprodutiva durante a pandemia. O que podemos dizer com segurança é que são milhares de mulheres todos os meses às portas dos hospitais.

Há evidências de que os riscos à saúde reprodutiva aumentaram. O Brasil é o epicentro da morte materna por covid-19. Elas morrem pelo vírus, mas adoecem gravemente pela falta de assistência em saúde. Já são mais de 200 mulheres mortas no período da gravidez, parto e puerpério —uma em cada quatro delas não teve acesso à UTI. “Morreram em extremo sofrimento”, diz Melania Amorim, uma das pesquisadoras responsáveis pelo estudo no Brasil. A Organização Mundial de Saúde, recentemente, publicou documento em que apela aos governos que mantenham saúde sexual e reprodutiva como serviços essenciais durante a pandemia. As epidemias de ebola e zika mostraram os efeitos nefastos às mulheres pela interrupção dos serviços: houve aumento na taxa de morte de mulheres por aborto inseguro, aumento da violência doméstica e gravidez não planejada na adolescência.

Os números são assustadores: “um declínio modesto de 10% na cobertura dos serviços para a gravidez e recém-nascidos pode resultar em mais 28.000 mortes, 168.000 óbitos de recém-nascidos, e milhões de gestações não planejadas devido à interrupção dos serviços de planejamento familiar”, diz a Organização Mundial de Saúde. O que fez o Governo Bolsonaro diante desses dados? Proibiu que o Ministério da Saúde divulgasse nota técnica sobre acesso a métodos contraceptivos e aborto em caso de violência sexual durante a pandemia. Fez mais do que ignorar a centralidade da saúde reprodutiva, passou a persegui-la com a intensidade dos autoritários que fazem do útero das mulheres bandeira política.

Essas mulheres ocuparão ainda mais leitos por aborto inseguro, correrão riscos vitais de deixarem seus filhos órfãos, além de aquelas grávidas e adoecidas por covid-19 virem a morrer em “extremo sofrimento”. Esta não é uma pandemia que toca nossos corpos igualmente: quanto mais frágeis e dependentes de regimes autoritários de governo da vida, como são muitas mulheres negras e indígenas dos países latino-americanos e caribenhos, maiores os riscos de uma mulher morrer simplesmente porque é mulher em idade reprodutiva. Não há maior escândalo sobre os efeitos da desigualdade de gênero que a morte de uma mulher porque a saúde reprodutiva não foi cuidada.

Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brown.

Giselle Carino é argentina, cientista política, diretora de IPPF/WHR.

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