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Coluna
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Prisão aos médicos justos

É hora de os médicos desobedecerem a lei penal e cuidarem das mulheres para que não morram de aborto clandestino

Mulheres protestam em frente ao Congreso argentino por uma lei de aborto legal, em março.
Mulheres protestam em frente ao Congreso argentino por uma lei de aborto legal, em março.RONALDO SCHEMIDT (AFP)
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“A prisão é o lugar do homem justo”, escreveu Henry Thoreau sobre a desobediência civil. A prisão ou o risco dela deveria ser o lugar de médicos justos durante a pandemia de covid-19 em países onde o aborto é criminalizado. Não ficariam presos mais do que a noite que também experimentou Thoreau pela desobediência civil em seu tempo. Precisamos de médicos nos hospitais para salvar a humanidade. Exatamente por serem tão essenciais é que este é o momento de serem virtuosos e justos. É hora de os médicos desobedecerem a lei penal e cuidarem das mulheres para que não morram de aborto clandestino.

Por onde regras restritivas de contenção à pandemia se cruzaram com desigualdades de gênero, como a violência doméstica ou a criminalização do aborto, mais mulheres morreram ou estiveram em risco de vida. Ao se ignorar as necessidades de saúde reprodutiva como parte da resposta de saúde pública à epidemia, o controle do surto de Ebola na Libéria, Guiné e Serra Leoa, levou a um crescimento de 75% no óvbito por mortalidade materna. Da China ao Equador, as normas de isolamento social aumentaram a vulnerabilidade de meninas e mulheres à violência doméstica. Inclusive nas taxas de feminicídio, como se registrou em São Paulo, com um aumento no número de notificações de mulheres mortas em casa quando comparado a mesmo período em 2019.

Os médicos justos devem seguir a consciência e praticar a boa medicina. Aborto é uma necessidade de saúde que não desaparece durante uma pandemia. Ao contrário, se torna ainda mais necessário de ser oferecido sem barreiras de acesso ou estigmas: a saúde reprodutiva permanece como uma necessidade de saúde durante qualquer situação de emergência social, seja ela um conflito armado ou uma crise humanitária. O silêncio dos governantes não pode ditar a consciência dos que sabem como proteger vidas: os médicos devem ser mais do que heróis de uma pandemia, é preciso que sejam transgressores para o mundo mais justo pós-pandemia.

Em 1973, um grupo de mais de trezentos médicos franceses seguiram o Manifesto 343, liderado por Simone de Beauvoir, e declararam-se cuidadores de mulheres em busca de aborto, ou seja, objetores de consciência a uma lei injusta que os proibia de exercer corretamente a medicina. A publicação do Manifesto das 343 mulheres foi acompanhada de uma charge que dizia “Quem engravidou as 343 vagabundas do Manifesto do aborto?”. O “quem” da pergunta era uma provocação ao debate público sobre como desigualdades de gênero conformam leis e direitos —se são as mulheres que reclamam o direito ao aborto, por outro lado, são os homens no poder que insistem em controlar seus corpos com a fúria da lei penal, inclusive as qualificando como “vagabundas”.

A pergunta das mulheres que sobrevivem à pandemia de covid-19 em países onde o aborto é crime seria diferente. Tem o senso de urgência e desamparo que acompanha nossas vidas: “Quem são os médicos que nos abandonam?”. Uma pandemia é uma emergência para a sobrevivência. Dependemos dos governos para existir e para cuidar das mulheres cujas desigualdades prévias as deixaram ainda mais vulneráveis à anomia da vida, como as mulheres pobres, negras e indígenas, ou meninas vítimas de violência sexual em casa. Se há um chamado ético na suspensão da normalidade pela pandemia, a resposta não pode ser a submissão às regras que governavam nossos corpos ou conformação aos privilégios que nos salvam, mas a consciência sobre o justo. Essa nova consciência pede a desobediência civil de médicos ao cuidado no aborto.

Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brown

Giselle Carino é argentina, cientista política, diretora da IPPF/WHR

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