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O barril de pólvora da pandemia na África: o desafio de um continente sem vacinar contra a covid-19

Fornecimento errático de doses, os problemas de distribuição e uma percepção atenuada do risco da covid-19 dificultam a imunização do continente, que só alcança 7% da população

Covid Africa
Vacinação em Lagos, a maior cidade da Nigéria, em 26 de novembro.PIUS UTOMI EKPEI (AFP)
José Naranjo

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A baixa taxa de vacinação na África, situada em torno de 7% da população com a pauta completa contra 44% mundial, é um dos maiores desafios enfrentados pelo mundo para acabar com a pandemia de covid-19. Os especialistas concordam que os problemas de acesso às doses pelo monopólio exercido pelos países ricos foram o principal fator que explica esses dados, mas não o único. A isso se somam as complicações de distribuição de vacinas que chegam tarde e a tropeções em sistemas de saúde com recursos escassos para realizar complexas campanhas de imunização, além da desconfiança em um continente em que não houve uma estratégia clara e onde a percepção do risco pela covid-19 é menor.

Na África só foram administradas 241 milhões de vacinas das 8 bilhões de doses inoculadas em todo o mundo, de acordo com a Our World in Data. “Algo que essa pandemia está nos ensinando é que tudo é global, que é muito importante que as porcentagens de vacinação sejam altas em todos os países para evitar que apareçam novas variantes”, diz Anna Roca, epidemiologista da Unidade da Gâmbia da Escola de Higiene e Medicina Tropical da Universidade de Londres. “Ainda que na África do Sul tenham sido os primeiros a descobri-la, não está claro onde a ômicron surgiu, mas o que é evidente é que em duas semanas estará presente em muitos países, se transmite com muita rapidez”, acrescenta a especialista.

As autoridades sanitárias mundiais e a comunidade científica vinham repetindo como um mantra há meses: deixar para trás na vacinação os países de baixos recursos é uma ameaça a todos. “Há um ano, quando começamos a ver que alguns países assinaram acordos bilaterais com os fabricantes, alertamos que os mais pobres e vulneráveis seriam pisoteados nessa corrida mundial pelas vacinas. E foi exatamente isso o que aconteceu”, lembrou nessa semana Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), “mas não podemos acabar com essa pandemia se não solucionarmos a crise das vacinas”. Os países ricos receberam 15 vezes mais doses por habitante do que os países de baixa renda, de acordo com a Unicef.

O desafio na África não é só que as vacinas cheguem aos aeroportos das grandes capitais; depois precisam ser injetadas. A iniciativa Covax, que fracassou em seu objetivo de repartir 2 bilhões de vacinas entre os países de baixa renda no final de 2021, é um exemplo: centenas de milhares de doses precisaram ser jogadas no lixo na África pela escassa margem entre a entrega e sua validade. “A Covax não funcionou como era previsto. Mas nem tudo foi um problema de escassez, também faltou uma estratégia clara”, afirma Eric Delaporte, epidemiologista da Universidade de Montpellier. Manter a rede de armazenamento e chegar além da capital foi um quebra-cabeças para muitos países. Segundo a OMS, uma em cada quatro vacinas enviadas à África não foi administrada.

O fornecimento errático e improvisado, sem uma previsão que permitisse adaptar as campanhas de imunização ao estoque, não contribuiu para gerar a confiança necessária. Um exemplo é Senegal. “O país vivenciou um pico de casos durante a terceira onda em julho. As pessoas se preocuparam e foram se vacinar maciçamente, mas em agosto as doses acabaram e muitas ficaram sem a imunização. Quando em setembro chegaram mais vacinas, as pessoas já não voltaram, de modo que no final do mês perderam a validade. Em outubro 200.000 vacinas foram destruídas”, afirma Alice Desclaux, antropóloga médica do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento em Senegal.

Dos 2 bilhões de doses de vacinas previstas em 2021, a Covax entregou 590 milhões. Um porta-voz do mecanismo atribui o fato, além do monopólio dos países ricos, às restrições à exportação e à falta de transparência dos fabricantes. “O grande desafio agora é manter os fornecimentos e torná-los mais frequentes, assim como trabalhar com os países para ampliar sua capacidade de absorver doses. O segundo ponto é importante, já que precisam de tempo para se preparar para qualquer envio de vacinas em grande escala. Nas últimas semanas, os doadores e fabricantes começaram a fornecer dados mais precisos, após um ano em que as doses e a transparência foram muito escassas”, afirma.

Para muitos países se trata da maior mobilização de vacinas de sua história, diz a Covax, e em alguns casos “terão que lidar com mais de cinco vezes o volume de vacinas que normalmente trabalham. Também entregarão a partes da população às que normalmente não precisam se dirigir. Geralmente, as vacinas são administradas em bebês e adolescentes, mas muitos países não contam com um programa de vacinação para adultos. Além disso, se a maioria dos países já implementou campanhas maciças antes, têm um prazo de entrega de um ou dois anos e, portanto, podem planejar em consequência, incluindo ter um fornecimento frequente. E com as vacinas contra a covid-19, estamos falando de um fornecimento que vêm de múltiplas fontes e o momento da entrega é, frequentemente, imprevisível”, informa Alejandra Agudo.

Centro de vacinação em Yaoundé, a capital de Camarões, na quarta-feira.
Centro de vacinação em Yaoundé, a capital de Camarões, na quarta-feira. DANIEL BELOUMOU OLOMO (AFP)

Infectados sem detectar

A escassez de doses, pelo menos até o verão, e os problemas logísticos criaram um caldo de cultura pouco propício entre a população. Os números oficiais da pandemia na África —8,7 milhões de casos e 223.000 mortes para 1,3 bilhão de habitantes— não refletem a realidade. A escassa capacidade de testagem e o caráter leve e assintomático da imensa maioria das infecções, principalmente pela juventude da população, ocultaram que o vírus circulou muito mais do que dizem as estatísticas. “Agora sabemos pelos estudos de seroprevalência”, comenta Delaporte. “Fizemos uma investigação em seis países da África ocidental e central e, após a segunda onda, havia de 45% a 55% de pessoas com anticorpos que haviam se infectado, principalmente nas grandes cidades”, acrescenta.

Apesar dessa ampla circulação do vírus, entretanto, milhões de africanos têm uma sensação muito diferente. “Nekut fii” (expressão em língua wolof que significa “não está aqui”), responde a jovem garçonete Fatumata Kande quando é perguntada sobre a covid-19, usando a expressão que se popularizou na Gâmbia para se referir à pandemia, que é vista como uma doença de brancos. “Não foi igual em todo o continente. Na África do Sul teve a gravidade do Brasil e da Europa, mas se olharmos a África ocidental vemos que a severidade é menor. E não se explica somente pela juventude da população”, diz Anna Roca. Os cientistas pesquisam outros fatores que podem ter reduzido os casos graves, como a maior exposição à malária e a outros coronavírus humanos e o contato com parasitas que modulam a resposta imunitária.

As dúvidas surgidas em todo o mundo sobre os efeitos secundários de algumas vacinas, como a da AstraZeneca —majoritariamente utilizada pela Covax—, também tiveram um impacto notável no continente africano. “Não é um fenômeno exclusivo da África”, lembra Delaporte, mas quando a França anunciou que não daria um visto sanitário às pessoas vacinadas com a AstraZeneca distribuída no continente e vinda da Índia o receio se espalhou. “A desconfiança existe, mas não podemos culpar a população, não existiu uma estratégia e uma comunicação clara sobre as vacinas”, diz Desclaux.

A África também não ficou de fora da outra epidemia, a de notícias falsas e de rumores sobre as vacinas. Enquanto na Europa e nos Estados Unidos se espalham os comentários sobre microchips e alterações de DNA, em muitos locais da África se temem supostos efeitos secundários e, principalmente, que provoque infertilidade. Como a ONG Care alertou, há países africanos onde só se vacinou uma mulher para cada três homens por essas crenças falsas. No Malawi e na Somália, mulheres casadas em idade fértil resistem à vacinação. Esse é um rumor recorrente: durante as campanhas de vacinação contra a poliomielite na Nigéria em décadas passadas muitas comunidades recusaram porque diziam que era uma tentativa secreta de esterilizar as crianças.

Para tentar reduzir a dependência exterior, a África se lançou em uma corrida para colocar em andamento centros de produção de vacinas. Nos últimos meses, surgiram três projetos diferentes na África do Sul, Ruanda e Senegal, onde a ideia é fabricar vacinas anticovid com RNA mensageiro, mas também lutar contra outras doenças. Todos acham ser possível começar a produção em 2023 e, para isso, assinaram acordos com empresas como a BioNTech e a Bioavac. Mas, por enquanto, será preciso continuar esperando a solidariedade global. Nessa semana o presidente chinês, Xi Jinping, prometeu 1 bilhão de doses extras à África, em um plano em que os interesses políticos e econômicos também entram em jogo.

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