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Maduro manobra para evitar abertura de processo no Tribunal Penal Internacional

Chavismo solta presos e faz reformas judiciais na tentativa de melhorar sua imagem, à espera de visita do procurador-chefe de Haia

Nicolás Maduro, el pasado jueves en Caracas (Venezuela)
Nicolás Maduro na quinta-feira passada em Caracas (Venezuela).EFE/MIGUEL GUTIERREZ
Florantonia Singer

O Governo de Nicolás Maduro faz manobras para esvaziar uma investigação do Tribunal Penal Internacional (TPI) sobre a situação no país. Com reformas judiciais e a libertação de vários seus 250 presos políticos, o chavismo tenta melhorar sua imagem apesar das acusações de violações sistemáticas de direitos humanos e crimes contra a humanidade. A amostra mais recente aconteceu nesta terça-feira. Dois dos três ativistas da organização Fundaredes detidos em julho, Omar de Dios García e Rafael Tarazona, foram libertados. Seu diretor Javier Tarazona, entretanto, continua detido. Há vários anos, essa ONG denuncia energicamente a presença de grupos guerrilheiros colombianos na Venezuela em conivência com o chavismo. Foram acusados de “terrorismo e traição à pátria”.

Estes movimentos ocorrem às vésperas da visita do procurador-chefe do TPI, Karin Khan, no final desta semana, como parte de uma viagem pela América Latina. O próprio Governo promove essa visita como um sinal de abertura e de mudança no sistema de Justiça, apontado um braço repressor do chavismo no último relatório da Missão Independente das Nações Unidas.

O pedido de investigação sobre a Venezuela pelo tribunal de Haia foi aberto em 2018 por iniciativa da Argentina, Canadá, Colômbia, Chile, Paraguai e Peru, em uma solicitação sem precedentes na curta vida desse tribunal, fundado em 2002. Depois, com a volta do kirchnerismo ao poder, a Argentina se desvinculou da iniciativa do chamado Grupo de Lima. O pedido teve a adesão também da ex-procuradora-geral venezuelana Luisa Ortega Díaz, que pediu asilo político na Espanha, e de organizações de direitos humanos e familiares de vítimas de execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias e torturas.

Fatou Bensouda, ex-procuradora-geral do TPI, considerou que havia evidências razoáveis para investigar crimes contra a humanidade na Venezuela. O parecer foi dado logo depois de uma visita do procurador-geral venezuelano, Tarek William Saab, na qual o chavismo tentou demonstrar esforços para melhorar o sistema de justiça no país. A decisão sobre a abertura da investigação é esperada desde julho, quando o novo procurador assumiu, com a intenção de fazer uma visita ao país e dar um último voto de confiança antes de autorizá-la. “Estou convencido de que o estreitamento das relações e a cooperação com os Estados integrantes melhorará o funcionamento do regime do Estatuto de Roma [que rege o TPI], em consonância com o princípio de complementariedade. A comunicação é essencial para explicar o mandato da Procuradoria e do TPI e para fomentar a confiança das partes interessadas. Aguardo com interesse a oportunidade de escutar e de aprender com esta minha primeira viagem à região como Procurador do TPI”, disse Khan em um comunicado. O Governo de Maduro tentará convencê-lo de que não há motivos para abrir uma investigação. As ONGs e vítimas defenderão o início de um processo contra membros do Executivo chavista.

Com a aproximação de uma eleição local que terá a participação de partidos da oposição pela primeira vez após sete anos de boicotes, o chavismo, encurralado em seu cerco diplomático, teve que ceder em vários aspectos. Sentou-se para negociar no México com a oposição, embora tenha congelado esse processo após a extradição para os Estados Unidos de Alex Saab, o operador comercial do Governo para fugir das sanções, também famoso como testa-de-ferro de Maduro. De fato, as reformas no sistema de justiça nacional constavam na pauta no México. Agora, o Governo se antecipou em adotá-las sem conciliar com a oposição, para atenuar as suspeitas no TPI.

O Executivo de Maduro se aferra a alguns marcos que testemunham sua mudança. Em 2018, quando o vereador opositor Fernando Albán morreu ao cair do 10º andar da sede do serviço de inteligência, o procurador Saab rapidamente lançou a tese do suicídio. Há cinco meses o funcionário se retratou, admitindo que se tratou de um assassinato, e três anos depois dos fatos ordenou a captura dos agentes que o custodiavam. Nessa mesma declaração, reconheceu como assassinatos os casos do capitão Rafael Acosta Arévalo, morto por tortura, e de Juan Pablo Pernalete, impactado pelo disparo de uma bomba de gás lacrimogêneo nos protestos de 2017.

Outro caso com o que o Governo tenta melhorar sua imagem é o de David Vallenilla, outro jovem morto nas manifestações de quatro anos atrás. No começo de outubro, uma juíza ordenou a absolvição do sargento que atirou nele. A decisão foi alvo de recurso pela família e o Ministério Público, e em tempo recorde o militar foi condenado a 23 anos da prisão.

Em setembro, muito discretamente, também começaram a ser soltos presos políticos como o ex-deputado Gilberto Sojo. Nesse mesmo mês, a Assembleia Nacional, subordinada ao chavismo, ditou sem maiores consultas públicas um pacote de leis que busca encobrir as graves falhas na situação dos direitos humanos no país. Alguns dos avanços legislativos têm a ver com a desmilitarização da Justiça ou a possibilidade de que ONGs de direitos humanos assumam a defesa de quem denunciar alguma violação de suas garantias fundamentais. Uma reforma do Código Penal reduz os prazos judiciais, para acelerar os julgamentos, e limita a três anos o período máximo de prisão sem trâmite em julgado.

“Se a Venezuela fosse um país de leis, estas mudanças legislativas trariam alguma melhora ao sistema de Justiça. Estas modificações não apontam para o enorme paquiderme que não se atrevem sequer a mencionar: que na Venezuela não temos juízes nem imparciais nem independentes, apenas simples funcionários que se limitam a cumprir ordens”, aponta uma análise sobre as reformas de Acesso à Justiça.

Trata-se de uma mudança radical na postura do Governo de Maduro. A pressão pelas acusações no TPI parecem ser sua maior encruzilhada, um terreno onde o chavismo tem pouca capacidade de manobra. Além das consequências jurídicas deste processo, que poderiam demorar, o processo em Haia acirra o cerco diplomático que Caracas tenta derrubar principalmente com a revogação de sanções, o restabelecimento de relações diplomáticas com a União Europeia e uma incipiente abertura comercial com a Colômbia.

Apesar desses esforços, a recente morte do general Raúl Isaías Baduel na prisão, sobre a qual o procurador Saab também antecipou como causa de morte a covid-19 – tese questionadapor sua família – agitou novamente a luta dos detentos políticos. A décima morte de um preso político custodiado pelo Governo ofusca os movimentos com os quais o chavismo procura se reerguer nos fóruns internacionais. Há duas semanas, os familiares de presos políticos protestaram para exigir que oTPI acelere sua decisão sobre a abertura de uma investigação contra Maduro e outros altos funcionários. A visita de Khan gera expectativas.

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