Ashraf Ghani, o presidente que fracassou na última tentativa de selar a paz com os talibãs no Afeganistão

Sua fuga antes da chegada da milícia a Cabul apaga 20 anos de dedicação ao país

Captura de tela de Ashraf Ghani, durante um discurso na TV afegã, em 14 de agosto.
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“Para evitar um banho de sangue, pensei que seria melhor ir embora”, escreveu Ashraf Ghani em sua conta do Facebook na madrugada de segunda-feira, horas depois de abandonar o Afeganistão. Naquele momento, os talibãs já haviam divulgado imagens em que apareciam sentados em seu gabinete de presidente. É um final pouco honroso para um homem que queria ajudar seu país, mas não soube se conectar com seu pulso e cuja severidade costumava ser percebida como arrogância. Fracassou sobretudo em selar a paz com essa milícia, tal como havia prometido durante suas campanhas eleitorais.

O ex-presidente, de 72 anos, nasceu na província de Logar, no então Reino do Afeganistão, em uma tribo pashtun. Ainda adolescente, foi estudar nos Estados Unidos com uma bolsa de estudos e posteriormente se formou em Antropologia pela Universidade Americana de Beirute. Depois de dar aulas na Universidade de Cabul entre 1973 e 1977, voltou aos Estados Unidos para o doutorado e ali lecionou até ingressar no Banco Mundial em 1991. Enquanto isso, seu país era ocupado pelos soviéticos (1979-1989) e mergulhou em uma guerra civil sangrenta que acabou levando os talibãs ao poder.

Ghani só voltou a seu país depois da queda do regime do Talibã, após a intervenção dos EUA em 2001. Ele então renunciou ao seu cargo no Banco Mundial para trabalhar como conselheiro especial das Nações Unidas. Nessa condição, foi um dos artífices do Governo provisório que assumiu o Afeganistão até a organização das eleições e se tornou um dos principais assessores do primeiro presidente, Hamid Karzai. Como ministro das Finanças, estabeleceu uma nova moeda, reformou o sistema tributário e encorajou a diáspora a retornar ao país, enquanto fazia uso de suas relações internacionais para garantir financiamento para o novo Governo.

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No entanto, fracassou na luta contra a corrupção que começava a se espalhar por todas as camadas da administração e acabou se desentendendo de Karzai. Então, em 2004, retornou à vida acadêmica como reitor da Universidade de Cabul. Mas a essa altura já havia sido atraído pela política. Sua tentativa de conquistar a presidência nas eleições de 2009 foi um fracasso retumbante. Ficou em quarto lugar, com apenas 3% dos votos.

Mas conseguiu cinco anos depois, quando Karzai não podia mais concorrer a um terceiro mandato, por determinação constitucional, ao preço de se aliar a Abdul Rashid Dostum, um notório senhor da guerra acusado de crimes contra a humanidade. Foi reeleito em 2019. Em ambas as disputas o resultado foi questionado por seu rival político, Abdullah Abdullah, com quem teve que dividir o poder e que agora condenou sua fuga do país.

Durante seu primeiro mandato, renovou a Administração com a substituição de muitos chefes de redes clientelistas por jovens afegãos, boa parte deles educados fora do país. Mas falhou em sua promessa de combater a corrupção e melhorar a economia. Além disso, o aumento dos atentados do Talibã coincidindo com a redução de tropas estrangeiras pôs a paciência dos afegãos à prova. O aumento da violência o levou a defender a necessidade de um acordo com o os talibãs, mas o grupo mujaheddin, que nunca reconheceu o Governo apoiado pelo Ocidente, se recusou a dialogar com ele ou seus representantes.

Os fundamentalistas islâmicos não hesitaram, porém, em negociar pelas suas costas com os Estados Unidos. As relações do Governo de Ghani com os EUA, que já vinham sofrendo altos e baixos por causa de suas críticas à ajuda internacional, azedaram irremediavelmente quando as negociações de Doha se tornaram conhecidas. Ghani aderiu com relutância aos planos do então presidente Donald Trump e compareceu, como convidado de honra, à assinatura na capital do Qatar do acordo de retirada das tropas que acabaria levando o Talibã ao poder um ano e meio depois.

Ao longo do caminho, Ghani, um cosmopolita, foi se isolando no palácio presidencial, cada vez menos tolerante com as críticas. Em seu retraimento pode ter pesado também o câncer de estômago de que padeceu. Ghani é casado com uma libanesa cristã, Rula Saade, que conheceu quando os dois eram estudantes em Beirute, e eles têm uma filha e um filho.

Resistência

Ahmad Masud, filho do comandante anti-Talibã Ahmad Shah Masud. JOEL SAGET (AFP)

Sem o Governo oficial, Ahmad Massud, filho do lendário combatente afegão anti-Talibã Ahmad Shah Masud, anunciou nesta segunda-feira que está assumindo a “resistência” contra os talibãs, que retomaram o poder no Afeganistão. Em uma carta aberta publicada na França, o filho do Leão de Panshir, assassinado pela Al Qaeda dois dias antes dos atentados de 11 de Setembro, pediu aos afegãos que se unam a suas fileiras no Vale do Panshir, ao norte de Cabul, enquanto pede à comunidade internacional que apoie sua luta contra a “tirania”.

“Meus companheiros de armas e eu estamos dispostos a dar nosso sangue. Apelamos a todos os afegãos livres, todos aqueles que rejeitam a servidão, a se juntarem ao nosso reduto no [Vale do] Panshir, a última região livre de nosso atormentado país”, escreve Massud em uma carta publicada ela revista La Règle du jeu, do escritor e filósofo francês Bernard-Henri Lévy, grande amigo de seu pai e que em 2002 produziu um relatório sobre a “participação da França na reconstrução do Afeganistão” a pedido do então presidente francês Jacques Chirac.

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