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Relatório da ONU sobre o clima responsabiliza a humanidade por aumento de fenômenos extremos

Especialistas do Painel Internacional sobre a Mudança Climática (IPCC) alertam que já ocorreram mudanças que serão “irreversíveis” durante “séculos ou milênios”. Esse grande estudo defende reduções “profundas” e “rápidas” das emissões

Homem observa um grande incêndio florestal que se aproxima da aldeia de Pefki na ilha de Evia (Eubeia), a segunda maior ilha da Grécia, neste domingo.
Homem observa um grande incêndio florestal que se aproxima da aldeia de Pefki na ilha de Evia (Eubeia), a segunda maior ilha da Grécia, neste domingo.ANGELOS TZORTZINIS (AFP)
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Já não se trata de algo mais ou menos provável, mas sim de um fato. Conforme adiantado por este jornal na última sexta-feira, o novo grande relatório conjuntural do IPCC, o painel de especialistas vinculados à ONU que há mais de três décadas estabelece as bases científicas sobre a mudança climática, fulmina o negacionismo. O documento considera “inequívoco” que a humanidade tenha “aquecido a atmosfera, o oceano e a terra”, o que gerou “mudanças generalizadas e rápidas” no planeta. A edição anterior deste estudo data de 2013, e desde então os indícios se multiplicaram, assim como os artigos e análises científicas que demonstram as consequências de uma crise que já gerou mudanças climáticas “sem precedentes” nos últimos milênios, e que em alguns casos serão “irreversíveis” durante centenas ou milhares de anos. Entre as consequências diretas, além da elevação das temperaturas médias, figuram os fenômenos meteorológicos extremos. Trata-se de eventos similares às ondas de calor ou às chuvas torrenciais que estão sendo vistas nas últimas semanas em diversos lugares do globo e que já aumentaram em intensidade e frequência devido ao aquecimento gerado pelo ser humano, conforme confirma o relatório.

O estudo divulgado nesta segunda-feira coube ao grupo de trabalho I do sexto relatório de avaliação do IPCC, elaborado com a participação de 234 especialistas de 66 países. Os cientistas revisaram mais de 14.000 artigos e referências publicadas até agora para montar sua síntese dos efeitos físicos já decorridos do aquecimento e para prever possíveis cenários em função do volume de gases de efeito estufa que a humanidade emitir nas próximas décadas.

Esses gases, responsáveis pelo superaquecimento do planeta, são liberados fundamentalmente quando combustíveis fósseis são queimados para gerar energia. Desde a Revolução Industrial, as emissões não pararam de crescer, chegando hoje a níveis inéditos. Dois exemplos: a concentração na atmosfera do dióxido de carbono (CO2) – o principal deles – é a mais elevada dos últimos dois milhões de anos; as de metano e óxido nitroso – os outros dois grandes precursores do aquecimento – não tinham alcançado níveis tão altos nos últimos 800.000 anos. Isto tem uma consequência clara: o aumento da temperatura média global já está em 1,1 grau Celsius em relação aos níveis pré-industriais; e o ritmo de aquecimento planetário é tamanho que não há precedentes de um processo similar pelo menos nos últimos 2.000 anos, aponta o relatório do IPCC.

O estudo adverte que o aumento da temperatura continuará pelo menos até meados deste século, haja o que houver. A partir de 2050 as coisas podem começar a ficar realmente complicadas, porque não será possível que o nível de aquecimento fique entre 1,5 e 2 graus, “a menos que ocorram reduções profundas nas emissões do CO2 e outros gases de efeito estufa nas próximas décadas”. No pior cenário, se não houver uma ação decidida e as emissões continuarem crescendo no mesmo ritmo que até agora, o relatório estima que até o final deste século se chegaria a um aumento de 4,4 graus, algo que multiplicaria também a intensidade e frequência dos fenômenos extremos. Os cientistas recordam que a última vez que se chegou a um nível de aquecimento acima dos 2,5 graus foi há três milhões de anos, quando o ser humano nem sequer existia.

O Acordo de Paris, assinado em 2015, fixou como objetivo principal reduzir as emissões para que o aumento da temperatura global ficasse entre esses 1,5 e 2 graus Celsius acima da era pré-industrial. E os relatórios do IPCC servem também para notificar os governantes dos países sobre o que se deve fazer para cumprir esses compromissos. Os especialistas propõem vários cenários de emissões durante este século. Em todos se espera que a barreira de 1,5 grau seja superada nos próximos 20 anos, devido aos gases de efeito estufa que a humanidade emitiu até agora e que permanecem na atmosfera durante décadas. Mas Pep Canadell, diretor do Global Carbon Project e um dos cientistas responsáveis pelo relatório do IPCC, explica que a situação ainda não é irreversível: no cenário de emissões mais otimista, ainda é possível conseguir que o aumento da temperatura até o final deste século fique em 1,5 grau, embora possa haver uma superação temporária desse limite nos próximos anos.

Para se manter em 1,5 grau, porém, são necessárias reduções “rápidas, sustentadas e em grande escala”, como explica a climatologista argentina Carolina Vera, uma das vice-presidentas do grupo de trabalho I do IPCC. Essas reduções das emissões levariam de 20 a 30 anos para ter efeitos nas temperaturas globais. Mas o relatório aponta que “os benefícios para a qualidade do ar chegariam rapidamente”. Finalmente, acrescenta por sua vez Canadell, para cumprir o Acordo de Paris será preciso também recorrer à captura do dióxido de carbono que já está na atmosfera, através de sorvedouros naturais, como as florestas, ou de soluções tecnológicas. Mas a captura através desses processos naturais é limitada, por isso não pode ser a principal solução.

Mudança de paradigma

Desde que o primeiro destes documentos de síntese foi publicado, em 1990, acumulam-se provas e estudos sobre o aquecimento. Mas os relatórios finais do IPCC costumam adotar uma linguagem mais conservadora, porque precisam ser aprovados por consenso entre os representantes dos 195 países que participam das negociações climáticas na ONU. A equipe científica deste sexto relatório apresentou seus resultados aos países no final de julho, e durante as duas últimas semanas negociou-se o texto final de 42 páginas apresentado nesta segunda-feira, no qual se esquiva qualquer debate sobre a influência do ser humano na mudança climática. Na redação do relatório de 2013, deixava-se aberta uma mínima janela para a dúvida. Mas oito anos depois esta se fecha definitivamente.

José Manuel Gutiérrez, diretor do Instituto de Física da Cantábria (norte da Espanha) e outro dos coordenadores do relatório, explica da seguinte forma: “O IPCC usa uma linguagem calibrada, que tem a ver com probabilidades e com a evidência disponível. Mas a influência do ser humano no clima já não se encaixa em nenhum desses limites de probabilidade, e se considera que é um fato provado, sobre o qual não há incerteza. A evidência já é tão esmagadora que não há dúvida científica. Este relatório é tão taxativo justamente para não continuar com este debate; é um fato, e a partir dele veremos como nos afeta e as potenciais soluções”. Canadell considera que se trata de “uma mudança de paradigma”: “Jogamos as possibilidades e as probabilidades pela janela, e se conclui que é um fato que o aquecimento se deve à humanidade”.

Atribuição dos fenômenos extremos

A equipe científica do IPCC trabalha no relatório há três anos. Mas a fase final coincidiu com uma concatenação de fenômenos meteorológicos extremos, como a tremenda onda de calor do fim de junho no Canadá, as inundações na Europa central ou na China em julho e os recentes incêndios associados ao calor na bacia do Mediterrâneo. Precisamente, outra das novidades importantes do relatório é a que se refere a esses eventos. O IPCC afirma enfaticamente: “A mudança climática induzida pelo homem já está afetando muitos fenômenos meteorológicos e climáticos extremos em todas as regiões do mundo. A evidência das mudanças observadas em extremos como ondas de calor, fortes precipitações, secas e ciclones tropicais e, em particular, sua atribuição à influência humana se fortaleceu desde o AR5 [relatório de 2013]”.

A cidade de Lytton, na Colúmbia Britânica canadense, foi devastada por incêndios florestais que se seguiram à histórica onda de calor na América do Norte em junho.
A cidade de Lytton, na Colúmbia Britânica canadense, foi devastada por incêndios florestais que se seguiram à histórica onda de calor na América do Norte em junho. JENNIFER GAUTHIER (Reuters)

O texto afirma que “é praticamente certo que as ondas de calor extremas se tornaram mais frequentes e intensas na maioria das regiões da Terra desde a década de cinquenta, enquanto os extremos de frio (incluindo as ondas de frio) se tornaram menos frequentes e menos severos, com uma grande confiança em que a mudança climática induzida pelo homem é o principal impulsionador dessas mudanças”. Uma situação semelhante surge para “a frequência e a intensidade dos eventos de precipitações intensas”, que aumentaram “desde a década de cinquenta na maior parte da superfície terrestre” e para as quais “as alterações climáticas induzidas pelo homem são provavelmente o principal impulsionador”.

Sergio Vicente-Serrano, pesquisador do Instituto Pirenaico de Ecologia, do CSIC, e um dos autores do capítulo sobre os eventos extremos, ressalta que as evidências sobre esse vínculo “são muito mais robustas do que nos relatórios anteriores”. Em 2013, por exemplo, apontava-se a possibilidade de que esses fenômenos aumentassem em virulência e frequência devido à energia que estava se acumulando na atmosfera devido ao aquecimento. O grande passo que a ciência deu nos últimos anos foi atribuir os fenômenos extremos concretos à mudança climática induzida pelo homem, como aconteceu com a onda de calor canadense. Isso foi conseguido, explica Canadell, pelos avanços tecnológicos –por exemplo, com computadores mais potentes e capazes de lidar com muito mais dados– e pelo aumento desses fenômenos.

O relatório conclui que existe uma “relação direta” entre o aumento das temperaturas médias e a multiplicação dos extremos de calor, as fortes precipitações, as secas agrícolas e ecológicas em algumas regiões, além do aumento dos ciclones tropicais intensos, da diminuição do gelo marinho do Ártico e da redução da camada de neve e de permafrost. O texto adverte que, para cada meio grau de aquecimento global, provocam-se “aumentos claramente perceptíveis na intensidade e na frequência de extremos de calor, incluindo ondas de calor (muito provável) e fortes precipitações (alto nível de confiança), assim como das secas agrícolas e ecológicas em algumas regiões (alto nível de confiança)”. E adverte que “haverá uma ocorrência crescente de alguns eventos extremos sem precedentes no registro de observação com o aquecimento”, mesmo que a meta do 1,5 grau seja atingida.

Mudanças irreversíveis

O relatório do IPCC lembra que muitas mudanças motivadas pelas emissões passadas já serão “irreversíveis durante séculos ou milênios”, especialmente aquelas que afetam os oceanos e as camadas de gelo. A pesquisadora Carolina Vera ressalta que esses impactos “vão continuar por centenas ou milhares de anos, mas podem ser desacelerados se as emissões forem reduzidas”. Espera-se, por exemplo, que o nível do mar continue a subir durante este século. Entre 1901 e 2018, o aumento foi de cerca de 20 centímetros. E tomando como referência o nível do período entre 1995 e 2014, em 2100 a elevação poderia ser de 40 centímetros no cenário de emissões mais otimista; no mais pessimista dobraria, até ultrapassar os 80 centímetros. Isto contribuirá para que aconteçam “inundações costeiras mais frequentes e graves nas áreas baixas e a erosão” da costa. “Os eventos extremos relacionados ao nível do mar, que antes ocorriam uma vez a cada 100 anos, poderiam acontecer todos os anos no final deste século”, explica o IPCC.

Fumaça gerada por incêndios florestais na cidade de Kysyl-Syr, em Yakutia, Sibéria, no início de agosto.
Fumaça gerada por incêndios florestais na cidade de Kysyl-Syr, em Yakutia, Sibéria, no início de agosto. Nikolay Petrov (AP)

Outro ponto crítico destacado no relatório é o Ártico, que continuará aquecendo mais de duas vezes mais rápido do que a média do planeta. Isso “amplificaria ainda mais o derretimento do permafrost e a perda da camada de neve sazonal, do gelo terrestre e do gelo marinho do Ártico”. Os cientistas preveem que o Ártico “estará virtualmente livre de gelo marinho em setembro ao menos uma vez antes de 2050”, em todos os cenários previstos no relatório.

Reações

“O relatório de hoje do IPCC é um alerta vermelho para a humanidade”, disse António Guterres, secretário-geral da ONU, que garantiu que “a viabilidade das nossas sociedades” depende da atuação de governos, empresas e cidadãos para limitar o aumento da temperatura a 1,5 grau. “Os alarmes são ensurdecedores e as evidências são irrefutáveis: as emissões de gases de efeito estufa da queima de combustíveis fósseis e do desmatamento estão sufocando nosso planeta e colocando bilhões de pessoas em risco imediato. O aquecimento global está afetando todas as regiões da Terra e muitas das mudanças estão se tornando irreversíveis “, disse o português.

Já Alok Sharma, presidente da decisiva Cúpula Mundial do Clima que ocorrerá no próximo mês de Novembro em Glasgow (COP26), sublinhou que “a próxima década é decisiva”. “A ciência é clara, os impactos da crise climática podem ser vistos em todo o mundo e se não agirmos agora, continuaremos a ver os piores efeitos sobre as vidas, meios de subsistência e habitats naturais”, disse ele.

A vice-presidenta espanhola e ministra para a Transição Ecológica, Teresa Ribera, também pediu uma ação “para intensificar os esforços para se adaptar às mudanças climáticas.” Como ela comentou, “as mudanças climáticas ocorrem em um ritmo cada vez mais acelerado e as evidências científicas impulsionam os governos e a sociedade mundial como um todo a acelerar o ritmo de transformação de nosso modelo de desenvolvimento e de nosso sistema econômico para enfrentar a grande ameaça representada pelas mudanças climáticas” .

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