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Os internatos canadenses do horror

Comissão da Verdade e Reconciliação estabeleceu em 2019 que 4.134 menores morreram nessas instituições, mas alguns especialistas elevam a cifra a 6.000

James Papatie, destacado no centro da imagem, em 1971.
James Papatie, destacado no centro da imagem, em 1971.

James Papatie foi arrancado da sua terra pela raiz. Nasceu em 1964 em Kitcisakik, uma comunidade do povo anicinape na região canadense de Abitibi-Témiscamingue (província do Québec), e foi parte dos quase 150.000 menores indígenas que viveram em um dos 139 internatos instituídos no Canadá para assimilá-los forçosamente à cultura dominante. Os três primeiros internatos foram fundados em 1883; o último fechou em 1996. Papatie esteve recluído no de Saint-Marc-de-Figuery, a 450 quilômetros de Montreal. Ainda recorda quando, aos seis anos, foi levado para essa instituição. “Foi um sequestro. Funcionários do Ministério de Assuntos Indígenas, sacerdotes e policiais foram nos buscar em embarcações. Algumas crianças abraçavam suas mães e avós. Vários pais apanharam da polícia. Podiam ir presos por se negarem a entregar seus filhos”, conta Papatie por telefone de Kitcisakik.

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First Nations people sing and drum during a ceremony and vigil for the 215 children whose remains were found buried at the former Kamloops Indian Residential School, in Vancouver, British Columbia, on National Indigenous Peoples Day, Monday, June 21, 2021. (Darryl Dyck/The Canadian Press via AP)
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“Depois viajamos algumas horas de ônibus. Chegando ao internato, tiraram nossa roupa tradicional e a queimaram. Deram banho na gente, nos lavaram com cândida e escovas para o chão. Aplicaram em nós um produto ardido contra os piolhos. Depois rasparam nossos cabelos e nos deram uniformes”, prossegue. Era só o começo do horror. “Fui agredido sexualmente por um sacerdote e dois alunos mais velhos. Os alunos reproduziam muitas vezes o que tinham sofrido. Apanhei, sofri maus tratos psicológicos, zombaria com a minha cultura”, enumera. O internato de Saint-Marc-de-Figuery fechou em 1973. Papatie foi enviado a uma residência de regime um pouco mais aberto e também viveu um tempo acolhido por famílias não indígenas. Só não foi devolvido ao seu povo. Deixou de estudar aos 15 anos, já com “muitos pensamentos negativos” na cabeça. Afundou-se no álcool e nas drogas durante anos, mas com força de vontade deixou essa etapa para trás e se tornou um líder da sua comunidade. Voltou ao lugar e à cultura que tinham tentado extirpar dele.

Sua vivência, junto com a de muitos outros, foi parte de “um genocídio cultural”, conforme definiu um relatório em 2015 da Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR) criada para analisar o ocorrido nos internatos. Agora emergem vozes no Canadá mostrando que o adjetivo não era exagerado. O caso de James Papatie (chamado de Jimmy na sua comunidade) resume boa parte do catálogo de horrores sofridos pelos menores indígenas. Ele recorda muitas horas fabricando móveis no internato. A CVR destacou que a exploração trabalhista não foi meramente episódica nessas instituições.

James Papatie em Kitcisakik, sua comunidade natal, onde voltou a viver atualmente.
James Papatie em Kitcisakik, sua comunidade natal, onde voltou a viver atualmente.

Este turvo capítulo do passado voltou ao primeiro plano quando comunidades indígenas descobriram cemitérios com tumbas sem nomes nos terrenos de três antigos internatos. Em 27 de maio anunciou-se a localização dos restos de 215 crianças em Kamloops (Colúmbia Britânica), em 24 de junho foi divulgada a descoberta de 751 tumbas não identificadas em Marieval (Saskatchewan), e em 30 de junho se informou sobre outras 182 tumbas no local onde funcionava a St. Eugene’s Mission (Colúmbia Britânica). Perry Bellegard, chefe da Assembleia das Primeiras Nações do Canadá, que agrupa 634 líderes e 900.000 indígenas (do total de 1,4 milhão de canadenses que se definem como tal, ou 4,9% da população), afirmou quando do terceiro achado forense: “Este é o começo dos descobrimentos. Peço a todos os canadenses que se unam às Primeiras Nações para exigir justiça”.

No dia seguinte, era a data nacional do Canadá. Milhares de pessoas se manifestaram em vários pontos do país. Homenagearam a memória dos menores que morreram nos internatos, manifestaram apoio aos sobreviventes e exigiram uma investigação aprofundada da tragédia. Sapatos infantis e brinquedos foram deixados como uma espécie de memorial em parques e escadarias de edifícios públicos. O premiê Justin Trudeau admitiu à Radio Canada: “O maior erro que este país cometeu foi a assimilação forçosa dos menores indígenas através dos internatos”.

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Esse erro começou em 1876, com a aprovação da chamada Lei dos Índios, que estipulou, entre outros pontos, que as crianças das comunidades nativas passariam à tutela do Estado. Essa lei federal regulamenta até hoje grande parte das atividades dos povos indígenas. John A. Macdonald, o primeiro-ministro considerado o mentor da política relacionada aos internatos, confiou ao seu ministro de Obras Públicas, Hector-Louis Langevin, o desenho desta rede de instituições.

O Governo federal financiou os internatos, e sua administração esteve a cargo de grupos religiosos (mais de 70% deles católicos). “Quando a escola está na reserva [indígena], a criança vive com seus pais, que são selvagens; está rodeado de selvagens e, embora possa aprender a ler e escrever, seus hábitos, sua formação e seu modo de pensar são de índios”, chegou a dizer Macdonald em um discurso parlamentar em 1883. O bispo Vital-Justin Grandin escreveu naqueles anos: “Quando se graduam em nossas instituições, as crianças já perderam tudo que têm de nativo, exceto seu sangue”. Duas falas que refletem claramente o desprezo pelos indígenas e sua cultura.

tumbas de niños halladas en el antiguo internado Kamloops
Familiares de internos de Mosakahiken em frente a um memorial pelas vítimas, em 4 de junho de 2021.COLE BURSTON (AFP)

Na última década do século XX, um grupo de sobreviventes começou a exigir pedidos de perdão e indenizações do Governo e das igrejas. Só em 2007 houve acordo entre as partes. Um ano depois, o então primeiro-ministro, Stephen Harper, desculpou-se em nome dos canadenses perante os povos indígenas por esses internatos. O Governo federal desembolsou quatro bilhões de dólares canadenses (16,7 bilhões de reais) entre compensações e gastos jurídicos. Os grupos protestantes também se desculparam e cumpriram com sua parte. Mas não a Igreja Católica. Os indígenas esperam um pedido de desculpas do papa Francisco e um pagamento equivalente a 112 milhões de reais, de um total de 131 milhões estabelecido no acordo. Em meio à onda de indignação pelas tumbas descobertas, oito igrejas (seis católicas e duas protestantes) foram queimadas nas últimas semanas, e outros templos foram pichados. Esses atos foram condenados tanto pelas autoridades como pelos indígenas.

Os cemitérios dos internatos são o testemunho mudo do que os povos nativos denunciavam havia muito tempo: que muitos pais não voltaram a ver seus filhos depois que estes lhes foram arrancados. “A comissão ouviu milhares de histórias. Em várias delas vieram à tona casos de menores que desapareceram. Não se queria aceitar a verdade. Agora é diferente por causa das descobertas”, constata Brieg Capitaine, professor de Sociologia na Universidade de Ottawa. A CVR estabeleceu em 2019 que 4.134 menores morreram nestes centros, mas alguns especialistas calculam as mortes em mais de 6.000.

Metade desses óbitos se deveu à tuberculose, e também foram registradas mortes por outras doenças. Outras foram causadas por incêndios ou por hipotermia e afogamento durante tentativas de fuga. Também houve suicídios. Porém, em grande parte dos casos as causas continuam sendo um mistério. “Passávamos fome”, aponta Papatie. Pesquisadores da Universidade de Toronto documentaram que a má alimentação fragilizou o sistema imunológico de muitas crianças e multiplicou as taxas de diabetes e obesidade em gerações posteriores.

A aglomeração, a calefação insuficiente e a má comida eram a norma em numerosos centros. “O Governo federal não quis destinar mais recursos. As cartas de vários missionários os solicitavam. Não acredito que os grupos religiosos quisessem gastar um só dólar para trasladar os corpos às comunidades originárias. Dito isto, enterraram essas crianças em tumbas não identificadas, numa amostra de racismo e desumanização”, denuncia Capitaine. Por isso, o Governo e os líderes indígenas pedem que as diversas congregações compartilhem seus arquivos.

Papatie afirma que a dor foi muito grande: perda da identidade, trauma pelos abusos, dificuldades para voltar a falar a língua de seus pais, vícios e tentativas de suicídio. Depois de largar os estudos, entrou numa espiral de drogas e álcool. “Queria deixar de sentir as feridas na minha alma”, afirma. Aos 20 anos, lutando contra seus demônios, começou a participar do Conselho de Kitcisakik. Entre 1997 e 2005 foi chefe da sua comunidade. Agora é o responsável pela gestão dos recursos naturais.

Impacto intergeracional

Diversos trabalhos acadêmicos mostraram o impacto intergeracional das instituições para menores indígenas. Papatie relata: “Minha mãe e eu fomos a internatos. Aí você fica sem saber como criar seus filhos. Tem muita tristeza e raiva. Alguns pais e filhos da minha comunidade passamos anos na residência Notre-Dame-de-la-Route. Não foram só os internatos reconhecidos por Ottawa no acordo de reparação que causaram problemas. Nas residências também havia casos de violência, de agressão sexual. Nossos filhos, que agora são pais, viveram coisas parecidas”, acrescenta. A comunidade de Papatie e outras moveram uma ação pedindo indenizações pelos danos ocasionados neste estabelecimento do Québec.

O Governo federal recebeu mais de uma centena de pedidos de verbas para investigar outros antigos internatos. Ottawa ofereceu o equivalente a cerca de 130 milhões de reais; Colúmbia Britânica, Alberta e Ontário, outros 156 milhões. Especialistas citados pelo jornal The Globe and Mail afirmam que a fatura poderia superar seis bilhões de reais. Encontrar, identificar e homenagear a memória dos menores desaparecidos já era uma das recomendações do relatório apresentado pela CVR em 2015. O Canadá já não pode mais olhar para o outro lado.

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