Diretor da OMS: “As variantes do vírus não são o início de outra pandemia”

Hans Kluge, diretor da organização para a Europa, considera inevitável a disseminação da covid-19 durante 2021, mas acredita que a crise na saúde entrou em uma fase mais administrável e previsível

Hans Kluge, diretor da OMS para a Europa, em agosto, em foto da instituição.OMS
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O médico belga Hans Kluge, diretor para a Europa da Organização Mundial da Saúde (OMS), alerta que “2021 também será um ano de covid-19” e recomenda não baixar a guarda nas medidas de prevenção e contenção, apesar do aparecimento de campanhas de vacinação. Ele também aconselha ficar atento ao surgimento de novas variantes, embora ressalte que “elas não provocarão outra pandemia”. À frente da divisão europeia da OMS desde fevereiro do ano passado, justo no início da epidemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, Kluge tem 25 anos de experiência em saúde pública. Coordenou programas de combate à tuberculose na Libéria, na Somália e no sistema penitenciário russo na Sibéria. Poliglota (além do holandês nativo, fala francês, inglês, alemão e russo), ele atende o EL PAÍS por telefone, de Copenhague, onde a OMS tem seu quartel-general para lutar na Europa contra a pandemia.

Pergunta. A Comissão Europeia está enfrentando uma enxurrada de críticas por sua estratégia de vacinação. Foi um fracasso ou é muito cedo para dar um veredicto?

Resposta. Seria prematuro e injusto começar agora a culpar alguém só porque a Europa está um pouco atrás de alguns países na taxa de vacinação. Temos que entender que as vacinas foram desenvolvidas com velocidade sem precedentes. Em geral, esse processo leva entre 5 e 10 anos. E temos de reconhecer que a estratégia de negociação da União Europeia [EU] permitiu uma economia de escala que proporciona por igual vacinas a todos os países a um preço justo para todos. Sem a UE, a maioria de seus países ―principalmente os pequenos, isolados ou com pouco poder de barganha― não teria vacinas, a menos que recorresse à OMS ou a órgãos multilaterais.

P. A UE estabeleceu a meta de vacinar 70% de sua população até meados de setembro. Acha isso viável após o atraso acumulado nas primeiras semanas?

R. Fala-se muito sobre a taxa de vacinação de 10% nos EUA ou 15% no Reino Unido. Mas a evolução de um país não pode ser comparada com a situação de 27 Estados-Membros, com 27 sistemas de saúde diferentes, que devem fornecer vacinas ao mesmo tempo e a um preço acessível para 450 milhões de pessoas. É uma tarefa gigantesca. E não é uma campanha de vacinação regular. É uma imunização contra uma pandemia. Não estou obcecado com a meta de 70%, mas estou muito confiante em que os atrasos no início das campanhas serão compensados pela chegada de novos produtos de qualidade e um aumento da capacidade de produção, em parte graças à colaboração das empresas farmacêuticas que até agora competiam entre si. E é importante que o relato da situação não confunda as pessoas, porque a covid-19 já é um assunto bastante complexo. Agora, o principal objetivo da vacinação não é a imunidade, mas sim proteger as pessoas mais expostas e vulneráveis. Com isso, a mortalidade será reduzida e os sistemas hospitalares não ficarão sobrecarregados. Esse é o objetivo principal.

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P. Teme que as novas variantes do vírus inutilizem as vacinas?

R. As novas variantes são um lembrete cruel de que o vírus ainda nos golpeia. Mas não são um novo vírus, são a evolução normal de qualquer patógeno que tenta se adaptar a seu hospedeiro, o ser humano. Não é o início de uma nova pandemia, mas é claro que temos que ficar alertas. Primeiro, porque podem causar reinfecções. Em segundo lugar, porque podem desencadear uma propagação mais rápida que tornaria mais difícil para os sistemas de saúde de alguns países lidar com a pandemia. E, por último, porque podem ter impacto na eficácia das vacinas. Com a gripe normal vimos isso, podem aparecer variantes que obriguem à produção de uma vacina ligeiramente diferente. Portanto, temos que permanecer vigilantes e em alerta porque se tivermos uma disseminação mais rápida e uma maior mobilidade das pessoas vacinadas poderemos ter um aumento no número de mortes.

P. Uma das vacinas, a da AstraZeneca, está sendo desaconselhada em alguns países para certas faixas de idade. Essa restrição faz sentido?

R. O grupo de especialistas da OMS em imunização [SAGE, na sigla em inglês] está analisando isso e apresentará sua recomendação na semana que vem [já a expôs na quarta-feira, aconselhando o uso para maiores de 65 anos]. Mas o importante é que cada vacina seja usada de forma a obter o máximo impacto com base em suas condições práticas de uso ou seu efeito em diferentes grupos de pessoas. A boa notícia é que à medida que cheguem mais e mais produtos, teremos mais flexibilidade e isso nos permite otimizar os recursos e trabalhar com um portfólio que inclua várias vacinas de diferentes fabricantes. O importante é que os Governos expliquem bem o seu uso e tenham um único plano de vacinação para não causar confusão entre as pessoas.

P. Estamos no início do segundo ano da pandemia e o cansaço e a frustração aparecem. O que recomenda para combater essa fadiga?

R. Sim, antes a chamávamos de fadiga pandêmica, mas acho que já estamos mais além, em uma fase de frustração. Estou muito preocupado com a possibilidade de uma epidemia paralela na saúde mental. Lancei uma coalizão de saúde mental, liderada pela rainha Matilde da Bélgica em nome das Nações Unidas, focada no impacto mental dos confinamentos, especialmente nos jovens que têm uma espécie de sentimento de “não estar crescendo”. Em mais de 30 países, os serviços de saúde estão identificando os grupos populacionais mais afetados para traçar ações e atividades que a comunidade possa lhes propor. As medidas não podem ser iguais em todos os países, devem ser adaptadas a cada situação e realidade. Para os jovens, em particular, precisamos que os programas sejam dirigidos por pessoas de referência, seja do esporte ou de outras áreas. O importante é demonstrar empatia para com esses grupos, não criticar quem se sente cansado da situação.

Hans Kluge, diretor da OMS para a Europa, em entrevista coletiva em Roma, Itália, em 5 de fevereiro.ALBERTO PIZZOLI (AFP)

P. A Espanha é um dos países mais afetados pela pandemia. Existe algum dado factual que explique esse impacto ou é uma falha de gestão?

R. Eu não chamaria de falha de gestão, de modo algum. No início, na OMS nós nos recusamos a fazer comparações entre as respostas de diferentes países à pandemia porque elas ocorrem em diferentes contextos operacionais ou políticos. São muitos os fatores e ainda não sabemos como eles afetam. O que sabemos é do que o vírus gosta. O vírus gosta da divisão e da desinformação. Onde a resposta política foi drástica e imediata, as medidas funcionaram. E tem que haver continuidade desde o aviso científico até a decisão política. As medidas não funcionaram onde as razões políticas prevaleceram a qualquer custo. Também descobrimos que as medidas reativas têm desempenho pior do que as medidas proativas, seja no sentido da restrição ou do relaxamento. Os movimentos brutais e rápidos em direção ao confinamento ou a abertura têm se mostrado menos eficazes do que avançar gradualmente e com segurança. No caso da Espanha, sempre que nos consultaram oferecemos nossa ajuda. A cada duas semanas, faço teleconferência com o ministro [da Saúde] Salvador Illa e sua sucessora está disposta a manter esses contatos.

P. Mas, no fundo, estamos vendo que as medidas dependem mais da força econômica de um país ou região do que da evolução da saúde. Aqueles que podem se permitir paralisam grande parte da atividade.

R. Esse é um ponto chave. Mas não estamos na mesma situação de março do ano passado. Naquele momento, o confinamento implicou a paralisação da economia por completo. O vírus foi freado, o que é bom, mas houve um impacto em muitas pessoas, principalmente as mais vulneráveis. Essa é uma das grandes lições que aprendemos até agora, que a pandemia não é igualitária e os mais vulneráveis foram atingidos com mais força. Agora temos que ser mais sofisticados na aplicação de restrições e adotar medidas para enfrentar o impacto social e na saúde mental, com medidas econômicas para apoiar os mais vulneráveis e mantendo as escolas abertas o maior tempo possível. E monitorar de perto a violência doméstica.

P. Depois do que aconteceu no Natal, teme que haja outra onda de contágios após a Semana Santa?

R. Antes eu também falava em segunda e terceira onda, mas, na realidade, estamos diante de uma corrente contínua. Porque uma onda significa que a propagação do vírus aumenta e, de modo natural, diminui. Mas a verdade é que isso nunca aconteceu, nunca baixou. A situação só melhorou com as medidas tomadas. Assim que são relaxadas, os contágios aumentam. Devemos ser sinceros: 2021 será outro ano de covid-19, mas mais administrável, mais previsível. O ano de 2020 nos pegou desprevenidos, entramos em um terreno desconhecido, politicamente obscuro e cientificamente desconhecido. Agora temos alguns elementos positivos, incluindo as vacinas. E as pandemias nunca duram para sempre, vêm e vão. Nesse terreno sou otimista, mas, apesar das vacinas, temos que ser muito cuidadosos e não repetir erros do passado.

P. Os especialistas da OMS estão em Wuhan investigando o epicentro da origem da pandemia. Que resultados vocês esperam obter?

R. Esperamos uma boa análise dos dados disponíveis. O sucesso da missão não significa necessariamente descobrir a origem do vírus, mas pode ser importante para estudar os hospedeiros intermediários do vírus. E isso é essencial para conter futuros surtos.

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