Joe Biden, 50 anos caminhando para chegar à Casa Branca

Democrata, após toda uma vida política, chega ao maior posto dos EUA com a missão de erradicar a confrontação de Trump. Seu apoio aos sindicatos, o investimento prometido contra a emergência climática e mais fundos para as universidades anunciam, pelo menos no papel, a Administração mais progressista da história norte-americana em anos

O presidente eleito dos EUA, Joe Biden.
O presidente eleito dos EUA, Joe Biden.JIM WATSON (AFP)
Amanda Mars
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Supporters of president-elect Joe Biden celebrate his victory in the 2020 presidential election outside the Chase Center in Wilmington, Delaware on November 7, 2020. - Democrat Joe Biden has won the White House, US media said November 7, defeating Donald Trump and ending a presidency that convulsed American politics, shocked the world and left the United States more divided than at any time in decades. (Photo by ANGELA WEISS / AFP)
Joe Biden, de jovem senador a presidente eleito dos Estados Unidos
U.S Democratic presidential nominee Joe Biden speaks about election results in Wilmington, Delaware, U.S., November 6, 2020. REUTERS/Kevin Lamarque
Joe Biden vence as eleições dos Estados Unidos e acaba com a era Trump

“Você é um garoto bonito e esperto como o demônio e vai superá-lo. Não deixe que isso te defina. Sei que há valentões no colégio que zombam de você, isso mudará. Vou pedir seu telefone, não espero que você atenda porque sei como é difícil para você falar ao telefone, mas te prometo que irá superar. Vou te dizer as coisas que me ajudaram.”

No vídeo, gravado com um celular em meio ao burburinho, aparece Joe Biden falando com um garoto um pouco envergonhado. É fevereiro de 2020 e, em um desses milhares de atos de campanha que os concorrentes à Casa Branca realizam no Estado de New Hampshire, o vice-presidente da era Obama se encontra com o pai de Brayden Harrington, que lhe fala dos problemas de gagueira de seu filho. Biden se agacha, encosta seu rosto ao do garoto, lhe promete que ele irá superar.

Aquele inverno em New Hampshire não parecia um cenário para a glória de Joe Biden. O político, de 77 anos, competia com mais vinte concorrentes para se transformar no candidato democrata à presidência e, mesmo que à época ainda liderasse as pesquisas, transmitia uma enorme sensação de fragilidade diante da ascensão de outros nomes mais novos, mais inovadores e mais alinhados à esquerda. Era a sensação de fragilidade de uma voz alquebrada pelos anos, de um participante fraco nos debates, sem eletricidade nos comícios e com uma carreira política tão longa, de quase 50 anos, que, mais que do que uma hemeroteca, tinha um campo minado.

Legendas em espanhol.


Meses depois, em agosto, Brayden, de 13 anos, é um dos oradores na convenção que coroa Biden como candidato democrata. Em um sofrido ato de superação, ainda gaguejando, fala a meio mundo: “Sou somente um garoto normal e, em pouco tempo, Joe Biden fez com que eu me sentisse mais seguro em relação a algo que me incomodou durante toda a minha vida. Ele se preocupou”.

Ir a mercados, abraçar crianças e escutar as pessoas mais velhas parece mais uma parte do trabalho de um candidato em campanha, mas a autenticidade é difícil de mostrar, impossível de estudar, e o capital político do veterano democrata explode em ocasiões como essa. Para conversar com um garoto gago, para transmitir-lhe que importa como fez Biden, ajuda ter sido gago.

Joseph Robinette Biden (Scranton, Pensilvânia, 1942) se apresentou à população norte-americana durante todo esse tempo como o candidato da empatia para um tempo de luto. Se as de 2016 foram as eleições do rompimento, as de 2020 são as de uma América já quebrada e atravessada por três crises simultâneas: a sanitária, a econômica e a social. Diz que quer curar feridas, diz que quer salvar “a alma” da nação.

A figura de vencedor nesta eleição não se entende sem as tragédias que lhe marcaram: a morte de sua primeira esposa e sua filha em um acidente; a perda de outro de seus filhos, Beau, por câncer. Também sem o local que o viu crescer, Delaware, um Estado de apenas um milhão de habitantes em que a política se faz porta a porta. E menos ainda é possível entendê-lo sem a marca da ambição: esta foi a terceira vez que disputa a presidência e, prestes a completar 78 anos, se converteu no mais velho líder norte-americano na Casa Branca.

O candidato à Casa Branca, durante uma visita a Detroit, Michigan, em 9 de setembro.
O candidato à Casa Branca, durante uma visita a Detroit, Michigan, em 9 de setembro. Leah Millis (REUTERS)

O democrata é, de vários ângulos, um candidato contracíclico: quintessência do establishment após anos de protestos contra o establishment; um homem, branco e idoso no momento de maior diversidade da política de Washington; um moderado em plena guinada à esquerda do Partido Democrata. Seu nome não gerou entusiasmo e furor midiático nas primárias, mas conseguiu aglutinar todas as frentes nelas. E durante a campanha se propôs a fazer o mesmo contra a figura incendiária de Donald Trump.

Os resultados eleitorais culminam uma luta de 30 anos, os que se passaram desde a primeira vez em que tentou conquistar a Casa Branca. “Em um café da manhã em uma manhã de sábado, no final de 1978, me olhou e me disse? Você trabalharia na Casa Branca? Biden era jovem, atraente, muito próximo. E já pensava nisso. Pensa nisso desde os anos 70”, lembra Sam Waltz, um empresário e jornalista que conhece Biden desde 1975, quando começou a cobrir assuntos políticos no Estado.

Joe Biden nasceu e passou seus primeiros anos de vida em Scranton, uma cidade mineira da Pensilvânia, em uma família católica e operária de origem irlandesa. Essas raízes as utilizou na campanha para marcar as diferenças em relação a Trump. Essa é uma eleição, diz, entre “Scranton e Park Avenue”. Mas, na verdade, Biden saiu de lá muito novo e cresceu e se forjou como político em Delaware. Quando seu pai perdeu o trabalho em uma empresa de material de barcos de guerra, após a Segunda Guerra Mundial, se mudaram a Wilmington, uma cidade de 70.000 habitantes, onde se reciclou como vendedor de carros Chevrolet. O jovem Joe estudou Direito na Universidade do Estado e rapidamente entrou na política local para dar o salto à nacional.

Em 7 de novembro de 1972, aos 29 anos, foi eleito senador por Delaware, o quinto mais jovem na história da Câmara Alta. Alto e elegante, católico e de raízes irlandesas, houve quem o visse destinado a ser o novo Kennedy. E uma tragédia de cunho kennediano lhe ocorreu semanas depois. Em 18 de dezembro, sua esposa Neilia, de 30 anos, e sua filha pequena, Naomi, de 13 meses, morreram em um acidente de carro. Os dois filhos homens, Beau, de três, e Hunter, de dois, ficaram gravemente feridos. Biden pensou em renunciar ao seu cargo, mas por fim fez o juramento no começo de janeiro no hospital, ao lado da cama de um dos meninos. Durante anos pegou o trem de manhã de sua cidade, Wilmington, a uma hora e meia de Washington, para retornar de noite e ficar com os garotos. Poucos anos depois começou a sair com uma professora divorciada, Jill Jacobs, com quem se casaria em 1977 e teria outra filha, Ashley. Biden sempre diz que os meninos, Beau e Hunter, têm duas mães, a que morreu e Jill.

Durante anos, Biden viajou de trem de sua casa em Wilmington a Washington, a uma hora e meia de distância. O então senador em uma imagem de setembro de 1988.
Durante anos, Biden viajou de trem de sua casa em Wilmington a Washington, a uma hora e meia de distância. O então senador em uma imagem de setembro de 1988. Joe McNally (Getty Images)

“Sua capacidade de se colocar na pele da pessoa com quem está conversando, sua empatia sincera, lhe são muito úteis para chegar a acordos com os republicanos. Será o melhor no Salão Oval desde o presidente Lyndon B. Johnson”, afirma por e-mail Laurence Tribe, professor de Direito de Harvard que durante anos assessorou Biden em questões constitucionais.

Aqueles foram os anos em que Biden cimentou seu capital político em Washington, quando demonstrou sua capacidade de construir pontes e também quando tomou decisões que não envelheceram bem: suas negociações com políticos segregacionistas, seu papel controverso de árbitro na audiência por assédio de Anita Hill (que em 1991 acusou o juiz Clarence Thomas, negro como ela, de assédio sexual), o impulso a uma reforma penal que disparou as taxas de encarceramento (1994) e o apoio à guerra do Iraque (2003).

“Eu o conheço há 40 anos e não acho que suas ideias principais mudaram. As implicações dessas ideias evoluíram com o passar do tempo e as mudanças. Tem uma grande mente e sente uma grande empatia, de modo que é natural que sua postura sobre alguns temas tenha se tornado mais progressista”, afirma o professor Tribe. “Por exemplo, sempre acreditou que os Estados Unidos tinham um problema profundo de discriminação racial e essa ideia agora evoluiu a uma postura mais progressista em relação às práticas policiais e às políticas de reabilitação para delitos menores. Da mesma forma, sempre acreditou que a orientação e a identidade de um indivíduo não deveriam importar e aproximadamente uma década atrás concluiu que as pessoas do mesmo sexo tinham direito a se casar”.

Ele defendeu o casamento igualitário, de fato, até mesmo antes do que o próprio Obama. Com exceção dos conservadores e trumpistas mais radicais, é difícil encontrar eleitores, republicanos e democratas, que não se refiram a ele como uma boa pessoa, um homem decente, uma pessoa normal: um pouco instintivo, alguns problemas e grandes doses de pragmatismo. Quem sobrevive na primeira linha da política em Washington sem essas coisas?

Os norte-americanos elegeram um político profissional e ortodoxo após quatro anos montados em um touro mecânico, um democrata da velha escola que costuma iniciar suas frases com um "Folks... (Amigos) e que, após receber uma rosa amarela como presente pode fazer comentários como: “Quando tenho problemas [com sua mulher] e quando realmente quero lhe dizer o quanto a amo, eu a dou uma rosa amarela. Pura verdade. Não vou lhe dizer que foram vocês que me deram, garotos!”.

Sua primeira tentativa pela candidatura democrata à presidência, em 1987, acabou de maneira vergonhosa. Naquelas primárias Biden, à época senador, costumava citar o discurso de um político britânico, Neil Kinnock, que falava de sua história familiar como exemplo dos filhos dos operários que demoravam gerações para chegar à universidade. Biden costumava atribuir esse fragmento ao autor, mas seu rival naquelas primárias, Michael Dukakis, encontrou uma gravação em que não o fazia. Explodiu o escândalo. Surgiram outras acusações de plágio e Biden saiu da corrida presidencial.

Em 2008 voltou a tentar a sorte, mas topou com dois rivais mais do que difíceis na corrida democrata, Barack Obama e Hillary Clinton. Na primeira votação, nos cáucus (assembleias eleitorais) de Iowa, ao ter menos de 1% dos votos, suspendeu a campanha. Essa retirada precoce lhe deu sorte: o jovem Obama apostou nele como companheiro de corrida, venceu e Biden foi vice-presidente dos Estados Unidos durante oito anos, uma época em que foi conhecido por todo o país como alguém amável, tranquilo e, também, diga-se de passagem, propenso às polêmicas.

Durante uma visita à cidade iraquiana de Ramadi em 2007. Biden presidia à época a Comissão de Assuntos Exteriores do Senado.
Durante uma visita à cidade iraquiana de Ramadi em 2007. Biden presidia à época a Comissão de Assuntos Exteriores do Senado. john Moore (Getty Images)

Por seus mal-entendidos e frases fora de lugar se chegou a criar o termo coloquial “bidenismos”. Foi um bidenismo, por exemplo, quando em um ato na Universidade Columbia, em 2008, esqueceu que um senador estava de cadeira de rodas e disse em público: “Venha. Chuck, levante-se, deixe que as pessoas te vejam”. Também, quando, em 2012, para falar da mão firme de Obama em relação ao Irã, disse: “Eu prometo a vocês, o presidente tem um grande pau”. Estava parafraseando Theodore Roosevelt, que recomendava falar com suavidade, mas com um pedaço de pau nas mãos. Mas, claro, soou assim. O bidenismo pode ser um lapso e também um erro garrafal, como quando meses atrás, em uma entrevista com um famoso locutor de rádio negro, disse que os afro-americanos que apoiam Donald Trump “não são negros”.

O tratamento caloroso também lhe causou alguns problemas. Em 2019, quando estava prestes a anunciar que se candidataria às primárias democratas, duas mulheres lhe acusaram de incomodá-las em atos públicos com seu excesso de efusividade. Muitos vídeos mostram Biden beijando e tocando seus interlocutores. O democrata acabou se desculpando dessa forma: “As regras sociais estão mudando. Eu entendo, e escutei o que essas mulheres estão dizendo”. “Sempre tento me conectar com as pessoas, mas serei mais consciente no futuro na hora de respeitar os espaços pessoais”, declarou. Uma ex-funcionária do Senado, Tara Reade, o acusou no começo do ano de assediá-la em 1993, ato que o candidato democrata negou e que foi questionado em investigações jornalísticas.

Biden não tem a brilhante oratória de Obama e nos debates, provavelmente fruto de sua gagueira passada, algumas vezes trava. É um político que se dá melhor em distância curtas, no cara a cara, falando durante horas com os pais de veteranos de guerra e consolando na televisão a filha do senador republicano John McCain (falecido em 2018) quando seu pai foi diagnosticado com câncer. Seu filho Beau, veterano do Iraque, morreu vitimado pela mesma doença em 2015, aos 46 anos. Beau era uma estrela em ascensão do Partido Democrata, o Biden que iria sucedê-lo.

“Beau Biden, aos 45 anos, era Joe Biden 2.0. Tinha tudo o que eu tinha de melhor, mas sem os erros de programação”, conta Biden em memórias escritas após a morte do primogênito e chamadas Promise, Dad (Me Prometa, Papai). “Tinha certeza de que algum dia iria concorrer à presidência e, com a ajuda de seu irmão, venceria”.

Esse irmão é Hunter Biden, uma espécie de antítese atormentada de Beau, expulso do Exército por testar positivo para cocaína, com problemas de vício e uma vida sentimental atribulada que incluiu uma relação com a viúva de seu irmão mais velho. Trump usou isso para atacá-lo, tanto pelas drogas como por seu polêmico trabalho para uma empresa de gás ucraniana, a Burisma, que lhe pagava um salário milionário quando seu pai era vice-presidente da Administração de Obama.

O então vice-presidente, com o presidente Barack Obama na Casa Branca em fevereiro de 2014
O então vice-presidente, com o presidente Barack Obama na Casa Branca em fevereiro de 2014Pete Souza (The White House)

Ainda que nunca tenham aparecido irregularidades e tráfico de influência, o republicano o exibe como uma prova de corrupção. Biden sempre saiu em defesa de Hunter, tanto pela Ucrânia- “nunca ocorreu nada antiético”, frisou no último debate – como pelos vícios: “Meu filho, como muita gente que vocês conhecem em suas casas, teve um problema com as drogas, o superou e estou orgulhoso dele”, disse.

Novamente, a tragédia pessoal o aproximou de milhões de famílias. A morte do mais velho, Beau, dissuadiu Biden de se apresentar às primárias de 2016, contra Hillary Clinton e Bernie Sanders. Por um lado, não tinha forças; por outro, Obama lhe parecia inclinado a apoiar a ex-secretária de Estado. Em terceiro lugar, leu um artigo na imprensa que lhe acusava de explorar sua dor e ficou tão enojado que decidiu esperar. Até agora.

Barack Obama se lançou à campanha com o lema de que Biden simboliza, principalmente, a empatia. Essa é, no geral, a mensagem mais repetida. “A presidência não muda o que você é, revela o que você é”, disse o ex-presidente democrata dias atrás na Filadélfia, em alusão a quem esperava que Trump, chegando ao Governo, se transformasse em um dirigente mais ortodoxo. “Biden trata todo mundo com respeito e é amigo dos trabalhadores”, frisou Obama.

“Biden tem uma arma secreta em sua aposta pela presidência: é o primeiro candidato democrata em 36 anos que não tem um diploma da Ivy League (a liga das universidades de elite norte-americanas)”, escreveu o professor Michael J. Sandel, prêmio Príncipe de Astúrias de Ciências Sociais. “Essa é uma força política. Uma das fontes da atração política de Donald Trump foi sua habilidade para apelar ao ressentimento contra as elites meritocráticas”.

Desde o começo da pandemia, o futuro presidente reduziu ao máximo suas saídas e mesmo agora, na reta final da campanha, optou por atos quase sem público como medida de prevenção pelos contágios de covid-19. Trump zomba dele, lhe acusava de estar recluso em seu porão e costuma chamá-lo de “Joe Dorminhoco”. O republicano também lhe acusa de ter se deixado levar pela ala esquerda do Partido Democrata e se dispor a levar o país pelo caminho do socialismo, um termo que nos Estados Unidos é associado ao comunismo e aos regimes autoritários.

O apoio aos sindicatos, o investimento de até dois trilhões de dólares (11,5 trilhões de reais) prometido para combater a mudança climática e as ajudas à educação universitária, entre outras medidas de sua agenda, desenham, pelo menos no papel, a que poderia ser a Administração mais progressista da história dos Estados Unidos. Mas se opôs ao ambicioso green new deal (novo pacto verde) proposto pela jovem estrela da esquerda, Alexandria Ocasio-Cortez, e o veterano senador de Vermont, Bernie Sanders. Também não falou a favor da saúde pública universal sem opção de planos privados. No ecossistema do Partido Democrata, que guinou em conjunto à esquerda, Joe Biden continua entre os moderados.

Em agosto, ao aceitar a indicação democrata, prometeu: “Aqui e agora, dou minha palavra: se me derem a presidência, tirarei o melhor de nós, não o pior. Serei um aliado da luz, não da escuridão. É o momento de nós, o povo, nos unirmos. Não se enganem, unidos podemos superar e superaremos esse tempo de escuridão. Elegeremos a esperança contra o medo”. Estava há 30 anos preparando um discurso assim.

Essa reportagem foi publicada originalmente em 30 de outubro e atualizada após os resultados.


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