Conselhos para conviver com a culpa na maternidade durante a pandemia
É possível agir para que essa emoção não afete mais do que o necessário a relação com nossos filhos nestes dias de fadiga pandêmica
O sentimento de culpa está estreitamente ligado à maternidade e à paternidade — sobretudo depois que a internet permitiu o acesso a um gigantesco volume de informações sobre educação e criação, facilitando ao mesmo tempo a proliferação de gurus e pseudoespecialistas na matéria e nos abrindo janelas a vidas familiares idílicas, nas quais tudo é disciplina positiva, democracia participativa e ambientes Montessori. Hoje em dia, tudo nos gera culpa, porque por trás de cada grito, de cada resposta fora de tom e de cada experiência ruim que não conseguimos evitar para nossos filhos intuímos traumas, cérebros danificados na sua construção, vínculos destruídos, um desastre familiar impensável na casa da influencer da vez, onde tudo é paz, sorrisos e tempo de qualidade.
“Com isto estou jogando pedras no meu próprio telhado, mas minha sensação é que a internet, com seus blogs de maternidade e seus milhares de especialistas em quase qualquer coisa, virou nossa principal fonte de referência, o oráculo do século XXI. Repetidamente consultamos o oráculo para obter essa ajuda rápida e imediata que a internet nos oferece, mas nos esquecemos de que nem sempre a resposta que obteremos será a acertada ou a melhor para o nosso caso. Porque não há uma forma única de educar ou criar, porque cada criança responde de uma maneira diferente, cada família e cada caso é um mundo, e não podemos comparar uns resultados com outros”, reflete a psicóloga Sara Tarrés, membro do grupo de trabalho em Inteligência Emocional do Colégio Oficial de Psicologia da Catalunha (Espanha) e autora do blog Mamá Psicóloga Infantil. Já Sonia Martínez, psicóloga e diretora dos Centros Cresce Bien de Madri, pioneiros no ensino e o desenvolvimento de habilidades emocionais, sociais e de aprendizagem, considera que o problema não é tanto a informação que acessamos, e sim “a comparação com os outros, as expectativas que temos e as imensas possibilidades de escolha à nossa frente”.
Seja como for, a culpa nos persegue. Pedimos perdão diariamente, compartilhamos nossos dramas de classe média nos parques com pais e mães afins, tentando nos sentir melhores através do recurso de se consolar com a desgraça alheia, prometemos não voltar a perder a cabeça, carregamos a culpa para a cama e temos dificuldade em conciliar o sono. Ainda mais desde o início da pandemia, uma situação extraordinária em que a culpa ganhou força em nossos lares. Confinamentos, teletrabalho, educação à distância, suspensão das aulas por causa de contágios, impossibilidade de delegar pontualmente os cuidados a familiares e amigos por causa das restrições de mobilidade, a necessidade de sermos pais, administradores domésticos, empregados e professores, tudo ao mesmo tempo e no mesmo espaço… Como não se sentir culpado enquanto sua filha, cuja classe foi confinada, perambula durante 10 dias pela casa sem que você, obrigado por seu trabalho, possa lhe dar atenção? Como não se sentir culpado quando perde a cabeça depois de não conseguir se concentrar em meio aos gritos e brigas de seus filhos, que afinal de contas não são responsáveis por nada? Como não se sentir culpado por amaldiçoar e por pensar coisas terríveis, por querer ser parte do livro da israelense Orna Donath?
“Conciliar o teletrabalho com a educação dos filhos causa estragos nas famílias, porque estas duas tarefas são em si incompatíveis. Ambas exigem concentração e atenção exclusiva, ainda mais quando os filhos são pequenos e os trabalhos são mais complexos. E, ao não poder fazer nenhuma delas com a qualidade que gostaríamos, apareceram todos esses sentimentos de culpa: culpa por não cuidar bem deles, por lhes falar grosseiramente, por não ter vontade de ler uma história para eles, pela sensação de não chegar a nada, por essa mal-entendida necessidade de passar tempo de qualidade com nossos filhos, pela necessidade de querer tempo para nós mesmos e por milhares de outras coisas, tanto pelas que fazemos como pelas que não fazemos”, aponta Sara Tarrés.
A boa notícia para quem precisar expiar suas culpas é que todas essas falhas (perder a cabeça com mais frequência que o habitual, sentir-se saturado dos filhos, não ter vontade de brincar com eles etc.) são, segundo as psicólogas consultadas, compreensíveis depois de um ano de pandemia. “São sentimentos muito normais. A mistura de sentimentos de culpa, raiva, tristeza, medo e incerteza nos leva a gritar quando menos esperamos. Nossas emoções transbordaram e deixaram de ser eficazes, por isso nesta época é fácil que às vezes a emoção nos domine. Estamos há muito tempo numa situação complexa”, afirma Sonia Martínez.
Os riscos do sentimento de culpa
Recentemente, não lembro onde, li uma especialista norte-americana que dizia que a culpa é uma emoção útil quando nos diz que fizemos algo ruim. Mas acrescentou: “O que está acontecendo agora é que sentimos que fizemos algo ruim mesmo quando estamos fazendo o melhor que podemos”. Eu me pergunto se nos acontece um pouco isso, se o que ocorre é que estamos sendo muito exigentes com nós mesmos como pais e mães.
“Queremos ser os melhores pais e mães do mundo, algo que a princípio é lógico e compreensível. Mas a coisa não fica só aí. Queremos ser perfeitos e isso não é possível, não é real. Há dias ruins e devemos aceitá-los porque fazem parte de nossas vidas. Também existirão dias em que apesar de sermos os pais mais amorosos do mundo talvez percamos o controle e acabemos por gritar com nossos filhos. Isso não deveria nos mortificar por acreditar que estamos causando um dano irreversível a nossos pequenos. É verdade que não é o mais adequado e recomendável, por isso é normal que essa culpa apareça, que será útil se não nos paralisar e invalidar”, argumenta Tarrés, que considera que um dos riscos que a culpa pode ter na relação com nossos filhos e sua criação é “nos tornar mais permissivos e tentar acabar com o mal-estar com a compra de presentinhos. Ou seja, deixar de exercer parte de nossas funções parentais, principalmente aquelas que nos fazem sentir sensações desagradáveis”.
Sonia Martínez vai no mesmo sentido e assinala que se não somos capazes de identificar a culpa ficamos à mercê dela e entramos em uma espécie de espiral da culpa: “Você se sente mal, de modo que dá agrados à criança, deixa ela ficar mais horas no tablet etc. Depois, por isso, volta a sentir culpa e então briga com ela por usar tanto o tablet, maldiz a indústria tecnológica e joga a responsabilidade no colégio para assim evitar sua responsabilidade. E recomeça”.
Conselhos para controlar o sentimento de culpa
As especialistas consultadas dão uma série de conselhos para que o sentimento de culpa não interfira além do estritamente necessário em nosso dia a dia e na relação com nossos filhos nestes dias de cansaço pandêmico:
- “Não existem pais e mães perfeitos. Todos temos dias ruins, mas isso não nos transforma em maus pais”, diz Sara Tarrés.
- A autora do site Mamá Psicóloga Infantil também encoraja pais e mães a não se deixar enganar pelas “maravilhosas” imagens das redes sociais: “Nelas parece não existir o conflito, o cansaço e as complicações. São esteticamente muito bonitas, mas absolutamente irreais”.
- Colocar em quarentena e sem nos deixar levar pela culpa as pautas de especialistas que estão em livros e na internet quando não podem ser colocadas em prática: “É preciso levar em consideração que estas pautas estão dadas sem conhecer as circunstâncias particulares das famílias”, afirma Sonia Martínez.
- Não pensar que devemos controlar as emoções. “Nossa responsabilidade está nas ações que realizamos, não nas emoções que sentimos e que não podemos escolher. Às vezes nos sentimos culpados por pensar em determinado momento que gostaríamos de jogar a criança pela janela e que não deveríamos ter filhos. Não podemos escolher esses pensamentos”, acrescenta a diretora dos Centros Cresce Bien.
- A culpa, só se serve para melhorar. “Quando o sentimento de culpa aparece eu encorajo a escutá-lo se isso serve a pais e mães para melhorar algum aspecto, mas ao mesmo tempo os incito a deixá-lo ir o quanto antes porque essa culpa acaba por impedi-los de ver tudo o que fazem de bom, que costuma ser muito mais do que acreditam “, argumenta Tarrés.
- A perfeição não traz felicidade. “As crianças não serão mais felizes por ter pais perfeitos, mas por outro lado, se têm pais imperfeitos que procuram soluções, que pedem desculpas e que expressam o que sentem, podem ser espetacularmente felizes”, conclui Martínez.
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