Miá Mello: “Falar de maternidade é um ato político”
Em cartaz com o monólogo 'Mãe fora da caixa’, atriz promove catarse ao falar sobre ter filhos. Fora dos palcos, reflete sobre o humor em tempos de ódio e culpa materna
“Eu topei fazer essa peça pra poder gritar em público: ‘O pós-parto é de f...der!’ Por favor, gritem comigo!”. É assim que a comediante Miá Mello faz até a mais elegante das avós repetir, a plenos pulmões, o mantra libertador do puerpério —esse palavrão mais temido que qualquer termo disfarçado entre reticências. Aos 39 anos, a atriz define o monólogo Mãe fora da caixa, com o qual está em cartaz em São Paulo, como um “divisor de águas” em sua carreira, tão potente para ela quanto a própria maternidade. Ao encarnar nos palcos a personagem Mãe (sem nome próprio), ela deixa para trás as mocinhas do cinema que à alçaram à fama para viver um mulherão não menos cômico: a mãe de uma menina de sete anos, apavorada com a perspectiva de uma segunda gravidez não planejada. No Rio de Janeiro, a peça coproduzida por ela “sem um puto para propaganda” ficaria em cartaz por oito semanas, mas o boca a boca a fez se estender por cinco meses. Em São Paulo, pode ser visto até o final de abril, com direito a terapia coletiva ao final de cada apresentação, com uma plateia ávida por falar sobre suas próprias vivências.
A peça de 80 minutos percorre os 180 segundos em que a personagem aguarda pelo resultado do teste de gravidez em um banheiro. Enquanto isso, Miá leva o público a uma hilária viagem entre flashbacks maternos e reflexões sobre os dilemas de ter filhos. “Meu pai sempre diz: ‘filho é bom, mas duuuuura…”, parafraseia o pai, o empresário aposentado Odilon Melo, em um dos muitos momentos em que ficção e realidade se confundem. “E os conselhos? ‘Tá achando difícil agora, é? Espera chegar a adolescência... Sexo, drogas e pop coreano!”, diz, arrancando gargalhadas de uma plateia em sua maioria feminina, mas não apenas.
Nascida Marília e rebatizada Miá pela família, a caçula entre três irmãs avisa antes de subir ao palco que o monólogo não é autobiográfico. É mãe de dois filhos: Nina, de 11 anos, e Antonio, de quase 3, que a brindam com farto material narrativo. Mas a criação da obra passa pela história de outras mães e pais. Quatro meses antes da estreia no Rio, em julho de 2019, Miá foi convidada pelo ator Pablo Sanábio (pai da Manuela), então um pai novato e ansioso por informações sobre a paternidade, a dar voz às histórias que ele encontrara no livro homônimo de Thaís Vilarinho (mãe do Matheus e do Thomás) — que também mantém uma página no Instagram com mais de 830 mil seguidores. Uniram-se à roteirista Cláudia Gomes (mãe da Pilar e do Vicente) e à diretora Joana Lebreiro (mãe da Cecília e do Vicente) para costurar esta colcha de experiências que compõem uma narrativa divertida e emocionante. “Esta não é a minha história, mas poderia ser”, repete a atriz ao EL PAÍS, em entrevista concedida numa tarde quente de fevereiro, num café da zona oeste de São Paulo.
Acompanhada por café e bolo de banana, Miá fala com o mesmo humor “hiperbólico” que a encantou no roteiro escrito por Cláudia (autora também da página Humor de mãe) sobre seus filhos, amor, política e a carreira. Ri em muitos momentos. Em tantos outros, embarga a voz. O motivo, justifica ela, é que poucas obras possibilitam ao artista viver um processo de autoconhecimento tão profundo. Como a peça joga luz nos primeiros meses da vida de um bebê, a protagonista se viu voltando à montanha-russa que é o pós-parto, quando a mulher passa por uma revolução hormonal, física e psíquica. “Grávida, eu e meu marido ficávamos brincando. ‘Eu tô no paupérrimo’. Porque engravidar era, pra mim, deixar de trabalhar, deixar de ganhar dinheiro. Então a gente falava ‘eu tô no paupérrimo’, e morria de rir. Mas foi só com a peça que eu dichavei essa palavra, o puerpério”, conta.
Durante os ensaios, ela diz ter lembrado da sensação “sufocante” de voltar a viajar pelo Brasil apenas dois meses após o nascimento do caçula, para a turnê de Meu passado me condena, peça que estrelou ao lado do comediante e amigo Fábio Porchat. “Eu chegava de viagem na segunda e já sentia aquela bola aqui [aponta para a garganta], porque já era quase quinta-feira e a gente tinha que viajar de novo. Cara, eu queria morrer... Eu devo ter tido uma depressão pós-parto. E é muito curioso, porque ainda é muito difícil admitir que eu tive uma depressão pós-parto. Eu sempre quando falo digo ‘devo ter’, ‘acho que.”
Miá nega se arrepender da decisão de viajar com a peça, mas tampouco está imune à sensação de culpa. “Uma psicóloga me agradeceu pela peça frisar que ‘tudo bem se você não conseguiu, ou não quis, amamentar’. Mas eu me senti muito culpada por não ter conseguido amamentar o meu filho”, admite. Passou a tomar para si trechos do roteiro como quem bebe doses homeopáticas de um remédio para aplacar a culpa materna, da qual nem a diva Beyoncé escapou —e cujas músicas do documentário Homecoming (Netflix, 2019), sobre seu regresso aos palcos meses após o nascimento dos gêmeos, permeiam a encenação.
“Mas é tudo ficção, viu?”
Apesar de ser garantia de boas risadas para quem tem filhos, a comédia com pitadas dramáticas não é destinada exclusivamente a quem é mãe ou pai. Às grávidas e aos que ainda têm dúvidas se querem trilhar por esse caminho, Miá garante que é “tudo ficção”. O mesmo que disse à filha Nina quando ela quis assisti-la. “Imagina, eu já fui vilã do filme Carrossel. Então sempre fui muito clara que aquilo ali não é a minha vida”, conta.
A reação da filha ao vê-la discorrer sobre a maternidade sem romantismos provoca lágrimas numa Miá emotiva (e nesta repórter também). “Ela terminou a peça chorando pra caramba, não parava de chorar. Aí falei: ‘filha, você gostou?’, e ela: ‘Gostei’. ‘Então por que você está chorando?’. 'Porque eu estou sentindo muito orgulho de você”, respira. “E, falando agora como atriz, eu tenho certeza que eu mudei a minha carreira com essa peça. Foi tão revolucionário como a maternidade pra mim. Eu acho que ela, como filha, também enxergou isso.”
Humor em tempos bicudos
Miá Mello tornou-se atriz quase sem querer. Era publicitária e foi fazer aulas de teatro como um passatempo, aos 22 anos. Tomou gosto pela atuação, emplacou papeis na TV, e não parou mais de atuar. Na comédia encontrou seu espaço: Meu passado me condena 1 e 2 figuraram entre as maiores bilheterias do cinema brasileiro em 2013 e 2015. E, embora ainda espere uma chance de estrear nas novelas, se diz privilegiada em viver de arte sem a dependência da televisão. “São tempos muito bicudos”, cita o bordão de sua mãe, a socióloga aposentada Marcileni Penariol Melo, ao ser questionada sobre fazer humor numa época em que parte da classe artística vive sob ataque institucional. “Mas a peça está num lugar inabalável, por falar de um assunto que converge. E olha de quantos temas poderosos estamos falando ali: sobre a força da mulher; sobre amor; sobre invisibilidade; sobre direitos; divisão de tarefas com o pai… Eu sinto que estamos fazendo ali no palco um ato político”, reflexiona.
De volta a São Paulo depois de seis anos vivendo no Rio, Miá se diz uma pessoa otimista. Relata a alegria que é levar os filhos à escola de bicicleta quando pode, comemora ter parte da família por perto e não poupa de elogios o marido, o diretor de TV Lucas Melo. Quando as cortinas do teatro fecham, leva para casa a tarefa de passar adiante o “legado da educação feminista” que recebeu dos pais. E confia que a próxima geração transformará a realidade para melhor, porque, diz ela, que outra opção tem senão a de ser otimista? “Se eu não tivesse filhos, talvez eu falasse ‘ah, não tem jeito mesmo’. Mas eu sou mãe. Então eu não tenho essa opção.”
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