Jogar vôlei e estudar, uma combinação impossível no Brasil e incentivada nos Estados Unidos
Principal divisão do esporte no país norte-americano, a liga universitária de vôlei atrai cada vez mais brasileiras ao oferecer bolsas em grandes faculdades e ótima estrutura esportiva
Aos 17 anos, Julia Borges acordava de madrugada para sair de Olaria, bairro da zona norte do Rio de Janeiro onde morava, e pagava duas conduções para chegar na Tijuca uma hora depois. Lá, estudava pela manhã, almoçava, passava a tarde esperando o treino de vôlei no Tijuca Tênis Clube —não teria tempo e nem dinheiro para voltar para casa entre a aula e o vôlei—, treinava pela noite e, finalmente, tomava novamente o transporte público para chegar em casa depois das 22h e reiniciar a rotina no dia seguinte. Aos 18, já morando em Coeur d’Alene, noroeste dos Estados Unidos, Julia era aluna de um college onde também tinha moradia, alimentação, equipe de vôlei, material acadêmico, material esportivo e qualquer tipo de preparação física disponível, tudo bancado por uma bolsa integral. “Em um ano, troquei o que era horrível pelo paraíso”, comemora a atleta, que deixou o futuro incerto no esporte brasileiro por um sonho esportivo e profissional no vôlei universitário norte-americano.
Com o sonho de se tornar uma jogadora profissional, a carioca pratica o esporte desde a infância mas, conforme foi envelhecendo, também começou a sentir a necessidade de ter um curso superior. “Aqui no Brasil, não dá para fazer faculdade enquanto joga profissionalmente”, explicou Julia, citando a falta de tempo e a ausência de bolsas para esportistas como os principais motivos. “Por isso, quando surgiu a oportunidade de conciliar as duas coisas nos EUA, nem precisaram me convencer. Eu sabia que não teria essa possibilidade aqui”, relata. Sem saber falar inglês, ela viajou em 2015 e passou um ano em Coeur d’Alene, no Estado de Idaho, estudando e jogando pelo time do college —uma etapa preparatória para a faculdade, normalmente usada por estudantes estrangeiros que chegam sem o conhecimento necessário da língua para entrar na universidade. Depois, foram mais dois anos jogando e estudando em um college na Flórida, do outro lado do país, antes de ingressar no curso de psicologia —e no time de vôlei— da Universidade da Carolina do Norte em Asheville.
O caso de Julia não é uma exceção. Fernando Barreto, treinador de vôlei de algumas escolas da rede de ensino particular no Rio de Janeiro e responsável por indicar Julia a equipes norte-americanas, conta que mais de 10 meninas jogaram com ele e fizeram o mesmo caminho recentemente. “Isso só no Rio de Janeiro, uma vez que existem firmas profissionais que fazem esse intercâmbio em todo o país. Fico muito feliz, porque é o melhor caminho”, opina ele. Ao contrário dessas firmas, Barreto não recebe dinheiro em troca e indica suas alunas diretamente a Thiago Lopes, 33, seu ex-aluno e treinador de vôlei universitário em San Francisco, que cuida dos trâmites burocráticos e recruta as atletas para as universidades. Os critérios, segundo eles: base familiar, rendimento acadêmico e potencial esportivo.
Nos Estados Unidos, após passarem pela adaptação no college, as estudantes-atletas que ingressam nas universidades jogam pela National Collegiate Athletic Association (NCAA). Lá, a elite do vôlei é o patamar universitário, de forma que as jogadoras profissionais norte-americanas possuem ensino superior completo, mas precisam seguir a carreira em outro país. Mas a ausência de uma liga profissional não significa falta de apoio. “A NCAA tem mais estrutura que a Superliga brasileira”, afirma Lopes, corroborado também pelas opiniões de Julia e Barreto. No principal torneio brasileiro, o São Paulo FC/Barueri, que foi eliminado nas quartas de final —o Minas se sagrou campeão da Superliga feminina, no último dia 5 de abril—, chegou a ter jogadoras com o salário bancado pelo treinador, José Roberto Gumarães, mesmo tendo parceria com um dos principais clubes de futebol do país. Uma realidade impensável para a “amadora” NCAA, ainda que o esporte esteja longe de ter a mesma popularidade nos Estados Unidos.
Segundo dados da NCAA, 50 jogadoras brasileiras atuavam entre os principais times da categoria na temporada de 2020, além de pelo menos uma dezena de treinadores. Ao todo, a Associação calcula 20.000 estudantes estrangeiros jogando em seus campeonatos. “O esporte no Brasil não vem muito bem das pernas. Muitos times de vôlei não pagam salários, não dão moradia, não têm base. É através dessa situação que eu convenço as meninas a virem”, conta Lopes. “A diferença entre o que acontece aqui e o que acontece nos EUA é monstruosa”, resume Barreto. Além das vantagens esportivas, ambos reforçam que, numa carreira breve e incerta como a de jogadora de vôlei, a oportunidade de conciliar um curso superior é fundamental para as decisões acerca do futuro da atleta. “A maior vantagem, sem dúvidas, é poder jogar e ainda conseguir um diploma”, diz a atleta e psicóloga Julia Borges. “Todas sabem que o funil é estreito. Então, se você tenta jogar e não dá certo, você ainda tem uma boa segunda opção”, completa Lopes. “No Brasil, o pensamento do esporte é ganhar campeonatos, não te formar”, critica ele.
“Copiar os EUA é possível, mas um sonho”
O esporte universitário é uma cultura enraizada nos Estados Unidos, e não só pelo vôlei. Basquete e futebol americano, esportes mais populares, têm nessa categoria confrontos entre universidades que lotam estádios e servem como fonte de revelação de grandes talentos para as milionárias ligas profissionais, NBA e NFL. As universidades, além de serem privadas, recebem generosas doações de famílias ricas e ex-alunos, e destinam boa parte das verbas para o esporte. “Também é uma questão cultural, de pertencimento, mas sobretudo um resultado de uma política de massificação das atividades físicas na escola com um ensino de qualidade”, justifica Fernando Barreto. “Enquanto aqui, pelo menos por onde trabalhei, o esporte é visto como um adversário da educação”, completa.
O professor, que também atua como coordenador de esportes em mais de uma escola, relata episódios de resistência por parte da escola na hora de bancar estudantes que se destaquem pelo viés esportivo. “As escolas pensam na parte financeira, transformam quadras em salas de aula para caber mais aluno”, contesta ele. “Deveriam existir atividades estimuladas desde cedo, para que as crianças possam escolher as modalidades e desenvolver junto com as outras aulas. Mas o professor é mal remunerado, não quer acompanhar a criança numa competição no fim de semana de folga, por exemplo. Fora o preconceito com quem se dedica aos esportes, como se este diminuísse a importância do ensino em classe”, relata. Para Barreto, copiar o modelo universitário americano, onde a educação caminha com o esporte, dependeria de uma política nacional de incentivo envolvendo todo o sistema educacional brasileiro. “Possível é, mas é um sonho”, admite.
Por outro lado, o aluno brasileiro não só tem dificuldades em conciliar o esporte com as aulas da escola, como também encontra o cenário oposto quando se arrisca em um clube voltado para a prática do vôlei, do futebol, do basquete ou qualquer outro. “Conheço gente do esporte que acha que as meninas têm que jogar, não estudar, porque o vôlei que vai dar futuro a elas. E se ela torcer o joelho? Eles não estão preocupados com a formação geral da pessoa”, pontua Barreto. Concordando com o ex-técnico, Julia Borges compara experiências que teve nos anos de treino no Rio de Janeiro com o período no college. “Tive contato com treinadores que colocam a escola em segundo plano no Rio e, quando percebem que você é boa, querem fazer exercícios até esgotar. Nos EUA, a própria escola coloca um limite no seu tempo de treino e planeja sua rotina para não prejudicar as aulas”, conta.
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Clique aquiDe Olaria à Suíça
Na jornada particular de Julia, a graduação em psicologia e a despedida da NCAA aconteceram em maio de 2020. Ela acabou fechando um acordo com um agente de jogadoras que a levou para jogar profissionalmente no VBC Cheseaux, na Suíça. “Teve uma queda de estrutura [em comparação com os EUA], mas vivi confortavelmente por lá. Pagavam salário e moradia”, lembra ela,”mas precisei voltar em dezembro, antes do fim da temporada, por problemas pessoais. Quis ficar com a família nesse momento da pandemia de covid-19″.
Com 23 anos e de volta ao Rio de Janeiro, Julia quer continuar jogando profissionalmente por mais alguns anos. A atleta também faz planos para voltar aos Estados Unidos e fazer sua pós-graduação —nesse caso, se contentaria trabalhando na comissão técnica de uma equipe universitária. O único futuro que descarta é ficar no Brasil, a não ser que o convite profissional pague um salário equivalente a um clube europeu. “Do jeito que está a realidade por aqui, com a moeda tão desvalorizada, vale mais ganhar um salário mínimo lá fora”, conclui.
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