_
_
_
_
_

Entre cortes de verba e restrições da pandemia, Brasil tenta se preparar para as Olimpíadas de Tóquio

Ginásios fechados, competições canceladas e renda prejudicada marcam a rotina dos atletas brasileiros. COB viabiliza preparação centralizando treinos no Rio e mandando equipes para o exterior

Arthur Zanetti, ouro em 2012 e prata em 2016, durante apresentação nas argolas.
Arthur Zanetti, ouro em 2012 e prata em 2016, durante apresentação nas argolas.Washington Alves/Exemplus/COB (COB)
Mais informações
Paulo Andre Camilo Bolt
“Se um dia eu perder a ambição de alcançar o Bolt, prefiro não sair da cama”
Yoshiro Mori 2
Yoshiro Mori, presidente do comitê olímpico de Tóquio, renuncia ao cargo após comentários sexistas
Rayssa Leal com o título da etapa mundial de Los Angeles.
Aos seis anos ela ganhou um skate. Aos 12, é uma das melhores do mundo

As novas ondas de infecções e mortes pela covid-19 colocam novamente em suspense a realização dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Mais de um ano depois do adiamento das competições devido à pandemia, o novo coronavírus ainda segue impossibilitando a volta da normalidade em boa parte do mundo, mas o Comitê Olímpico Internacional (COI) insiste que realizará os Jogos na capital japonesa entre 23 de julho e 8 de agosto de 2021. Até a tocha olímpica já iniciou seu revezamento, apesar das mudanças na execução da tradição. Diante dessa perspectiva, o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) tem a missão de preparar seus atletas para o maior desafio do esporte brasileiro desde Rio-2016. Atletas vivem de superar desafios. Mas ninguém preparou os esportistas para ―além de superarem os adversários e seus próprios limites―, vencerem as adversidades das Olimpíadas mais atípicas da história, num contexto de auge da crise sanitária no Brasil, de cancelamento de competições profissionais, de restrições para treinar e da diminuição do investimento na categoria por parte do Governo federal.

A expectativa do COB é que a delegação brasileira tenha entre 270 a 300 atletas no Japão. Atualmente, o Brasil tem 197 vagas olímpicas confirmadas. O atletismo é a modalidade com mais classificados até agora (25), entre equipes de revezamento e nomes individuais, sem contar os esportes coletivos: futebol feminino e masculino somam 36 vagas, enquanto handebol feminino e masculino têm, juntos, 28 vagas. A ginástica artística tem cinco vagas confirmadas, mas quatro são da equipe masculina e uma é da atleta Flavia Saraiva. Já a natação tem 12 confirmações, quatro para cada revezamento masculino (é comum que um atleta participe de mais de um revezamento).

A ginástica artística e a natação conquistaram, juntas, duas medalhas de prata e duas de bronze para o Brasil na última Olimpíada. E ambas estão hoje entre as modalidades mais afetadas pela pandemia. Na natação, o campeonato brasileiro, marcado para o Rio de Janeiro nos dias 19 a 24 de abril, será a única chance dos atletas alcançarem a seletiva olímpica. Se classificam todos os campeões e vices das provas dos torneios, desde que tenham o índice (tempo mínimo) definido pela Federação Internacional de Natação. Já na ginástica artística, etapas da Copa do Mundo, que acontecem por todo o planeta e servem normalmente como seletivas, foram adiadas ou canceladas. A Federação Internacional de Ginástica deu o prazo de 29 de junho para que seletivas continentais aconteçam, como o torneio pan-americano marcado para junho no Brasil. Caso não seja possível, as colocações do Mundial da modalidade de Stuttgart, realizado em 2019, definirão as últimas vagas.

O ginasta Arthur Zanetti, que conquistou a medalha de ouro em Londres-2012 e prata na Rio-2016 competindo nas argolas da ginástica, estará presente em 2021 como membro da equipe brasileira que garantiu quatro vagas. “Está sendo um ciclo cheio de incertezas, não dá para garantir que esse pan-americano [que definirá as últimas vagas] vai acontecer”, admitiu o atleta. “E esse intervalo entre Jogos mais longo [cinco anos] tampouco significa que ficamos mais tempo treinando ou que estamos mais preparados. Nunca fiquei mais de um mês e meio longe do ginásio, e a pandemia me fez ficar quatro meses em 2020. É muito difícil recuperar”, conclui.

Os ginásios fechados, obrigando os atletas a treinarem em casa, e as suspensões de torneios, onde são feitas as classificações e as avaliações mais acuradas sobre o desempenho, são as maiores dificuldades impostas pela pandemia para Josué Moraes, coordenador de preparação física do COB. “Frente às restrições locais, temos condições de oferecer soluções nacionais (como a centralização dos treinos no Rio) e internacionais para os nossos atletas, dando continuidade ao trabalho deles”, explica ele, “mas a falta de competições não tem como contornar. Tentamos manter os parâmetros, mas eles precisam estar com os adversários, é outra pressão. Isso faz com que a gente tenha que trabalhar mais e melhor”.

Centro de treinamento do COB, no Rio de Janeiro.
Centro de treinamento do COB, no Rio de Janeiro.Rafael Bello (COB)

Em uma das soluções internacionais encontradas pelo Comitê, a seleção de judô foi treinar e competir na Europa. A equipe masculina está ná Geórgia, enquanto a feminina participa de torneios na Albânia. No judô, as vagas olímpicas são decididas pela classificação do ranking mundial no fim de junho, o que obriga os brasileiros a participarem de competições para continuarem bem colocados em relação ao resto do mundo. A única atleta da seleção principal da modalidade que não está fora do país é Mayra Aguiar, bronze nos Jogos de 2012 e 2016. Assim como Zanetti, ela precisou treinar duas semanas deste mês de março no Rio de Janeiro, onde ficam as instalações do COB, por conta das restrições sanitárias que implicaram no fechamento do seu ginásio em Porto Alegre, onde mora. Mayra se recupera de uma cirurgia feita em setembro e luta contra o tempo para estar presente em Tóquio.

Além do judô, o COB viabilizou treinamentos do atletismo nos Estados Unidos; vôlei de praia, tênis de mesa e maratona aquática no Catar; boxe na Alemanha; handebol em Montenegro; taekwondo na Sérvia; e caratê na Turquia, entre outros.

Além do prejuízo esportivo, o financeiro

Mayra Aguiar, Arthur Zanetti e boa parte dos atletas olímpicos do Brasil fazem parte do Programa Atletas de Alto Rendimento (PAAR) das Forças Armadas, que apoia o esporte brasileiro desde 2011. Nos Jogos do Rio, 13 das 19 medalhas foram conquistadas por atletas apoiados pelo exército. Para ser beneficiado, o atleta passa por um edital público onde são analisados os currículos pessoal e esportivo. Aprovados, eles fazem um curso de formação e ingressam como militares temporários, tendo direito a uma remuneração mensal (no último ciclo, estava na casa dos 3.200 reais), direito a uso das instalações militares e apoio médico.

Apesar do apoio, o salário das Forças Armadas não constitui grande parte da renda mensal dos atletas mais bem sucedidos do país. Zanetti, por exemplo, que é terceiro sargento da Aeronáutica, recebe ainda ajudas de custo do Governo federal pela Bolsa Pódio, além de dois patrocínios e salários da Confederação Brasileira de Ginástica e da Prefeitura de São Caetano, onde fica seu clube. Durante 2020, o ginasta teve redução nos patrocínios e um corte de 50% da ajuda da Prefeitura, que alegou prioridade de investimentos na saúde. No entanto, não recebe nada desde dezembro. Recentemente, foi informado que seu salário, que era de mais de 144.000 reais por ano, cairá para 56.000 reais anuais, que devem ser pagos em oito parcelas a partir de maio.

“Não aceitei [a redução], mas tenho um objetivo muito maior do que a Prefeitura de São Caetano. Quero ser o primeiro ginasta a ganhar três medalhas olímpicas nas argolas pelas pessoas que me apoiam, não pela Prefeitura”, diz Zanetti. “Talvez se o Governo investisse no esporte como política pública de prevenção à obesidade, não teríamos tantos casos graves do novo coronavírus e não estaríamos nessa situação [de toda a verba indo para a saúde]”, completa o ginasta.

Arthur Zanetti foi prata nas argolas nos Jogos do Rio, em 2016.
Arthur Zanetti foi prata nas argolas nos Jogos do Rio, em 2016.Flavio Florido/Exemplus/COB (COB)

O Bolsa Pódio é garantido a atletas que estejam entre os 20 melhores do mundo em sua modalidade, no momento que o edital é aberto, e passem no critério subjetivo de seleção de COB, confederação e Secretaria do Esporte. A avaliação é feita caso a caso e os valores são de 5.000 a 15.000 reais para beneficiar, no momento, 274 esportistas. Se o atleta não está entre os 20 melhores do mundo mas ficou no pódio de qualquer competição nacional ou internacional durante o ano anterior, ele tem direito ao Bolsa Atleta, que paga de 950 a 3.100 reais para mais de 6.000 beneficiados.

Queda nos investimentos

Mesmo os auxílios financeiros vindos do Governo federal, que os atletas contam como os mais seguros, foram afetados pela queda do investimento no esporte que, apesar de durar mais de uma gestão, foi acentuada no Governo Bolsonaro. O Bolsa Atleta, criado em 2005, foi reajustado somente uma vez, em 2010, e paga menos que um salário mínimo em sua remuneração mais básica. Já as Forças Armadas, que apoiavam 584 atletas em 2019, fechou 50 vagas no edital do ano seguinte, em 2020. Da mesma forma, o mandato iniciado há dois anos reduziu o Ministério do Esporte a uma Secretaria da pasta da Cidadania e, ano passado, conforme informou o Portal UOL, demitiu mais de 500 terceirizados, que representavam dois terços dos funcionários da Secretaria. Na área que cuida do Bolsa Atleta, um corpo de 18 pessoas foi reduzido para dois empregados.

“O esporte perde espaço e condições de desenvolvimento desde o Governo Temer”, pontua Kátia Rubio, professora da USP e pesquisadora do esporte olímpico no Brasil. “Foi um planejamento a curto prazo feito para os Jogos do Rio que não teve continuidade”, acrescenta Zanetti. “Quem acompanha sabia que não existia o longo prazo pós-2016, que era a crônica de uma morte anunciada. Só não sabia que o buraco seria tão profundo”, completa Rubio.

Apoie a produção de notícias como esta. Assine o EL PAÍS por 30 dias por 1 US$

Clique aqui

O COB, por sua vez, afirma que consegue manter as atividades necessárias no ano de pandemia graças à Lei Agnelo/Piva, que garante 300 milhões de reais anuais ao Comitê repassados pela Caixa Econômica Federal através das loterias. A maior fonte de verba do esporte, no entanto, está ameaçada por uma dívida herdada pelo COB da extinta Confederação Brasileira de Vela e Motor, com a Receita Federal. Essa dívida fez o Ministério Público Federal recomendar a suspensão do repasse da Caixa ao esporte olímpico no último fevereiro, como já tinha feito por um dia há dois anos, o que implicaria na inviabilidade econômica do esporte olímpico brasileiro. “Quando o COB teve interrompido o repasse de recursos das loterias em 2019 pelo mesmo problema, tanto o Ministério da Cidadania quanto a própria Caixa alinharam entendimento de que o COB poderia continuar recebendo tais recursos. O COB confia que ambos manterão seu entendimento que, inclusive, já foi respaldado pelo Tribunal de Contas da União (TCU)”, respondeu o Comitê.

Por fim, a expectativa geral é que a Olimpíada pandêmica de Tóquio apresente resultados prejudicados pelo estado de exceção que perdura por todo o mundo. “Não teremos aquelas quebras de recorde absurdos. Serão Jogos com notas mais baixas e tempos mais lentos”, prevê Arthur Zanetti. E a diferença pode ficar mais acentuada no desempenho brasileiro, já que seus principais atletas vivem um contexto de corte nos investimentos e restrições impostas pelo auge da pandemia do país, que é o epicentro da covid-19 no mundo a quatro meses da abertura dos Jogos. “O princípio da isonomia já foi quebrado, porque os esportistas não estão tendo as mesmas oportunidades de treino e competição. Se isso não inviabiliza [o bom desempenho brasileiro em Tóquio], dificulta o processo”, conclui Katia Rubio.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_