Por que eu amo o EL PAÍS. Meus 44 anos escrevendo para este jornal
Juan Arias se dirige aos leitores que começam a pagar pela edição brasileira para contar sua história e a deste veículo. “Foi e é um jornal que recompensa o profissionalismo e a liberdade de expressão. O Brasil é fundamental para o EL PAÍS”
Desde que comecei a trabalhar no EL PAÍS, faz agora 44 anos, nunca o deixei. Minha primeira crônica como correspondente, então na Itália, foi em 16 de março de 1976, sobre o sequestro pelas Brigadas Vermelhas do então primeiro-ministro Aldo Moro, da Democracia Cristã. Desde então, escrevi cerca de 30.000 artigos para o jornal e cobri 120 viagens internacionais como enviado especial acompanhando os papas Paulo VI e João Paulo II ao redor do mundo.
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Era a primeira vez que trabalhava para um jornal com total liberdade de imprensa. Antes, o fizera no vespertino Pueblo de Madrid, nos tempos da ditadura de Francisco Franco, quando o jornal passava diariamente pela humilhação da censura fascista. Meu editor-chefe era então Juan Luis Cebrián, com 19 anos, e que acabaria sendo o primeiro diretor do EL PAÍS.
Comecei a trabalhar no jornal quando se chamava El País de Madrid, que chegou a ter mais de um milhão de leitores diários. Hoje, o EL PAÍS poderia ser chamado de o jornal do mundo, porque com sua edição digital é visitada diariamente por mais de 50 milhões de leitores únicos nos cinco continentes, de maneira especial na América Latina, incluindo esta edição do Brasil, em português.
A história do EL PAÍS é mais do que a de um simples jornal, pois mesmo antes de sair, enquanto se aguardava a morte do ditador Franco, se tornou o símbolo da nova Espanha livre dos grilhões da ditadura. Quando o jornal foi publicado, andar com ele nas mãos pelas ruas era um ato de resistência para indicar: “franquismo nunca mais”. A Espanha estava saindo de uma guerra civil e de uma sangrenta ditadura de 40 anos em que as liberdades civis e os direitos humanos tinham sido perseguidos.
O primeiro diretor do EL PAÍS, Juan Luis Cebrián, convocou imediatamente todos os intelectuais mais importantes de todas as tendências, exceto os fascistas, para escrever no novo jornal da democracia. Lembro que um dos primeiros artigos foi do poeta Rafael Alberti, comunista, que ainda estava exilado em Roma. O jornal abriu suas páginas para todas as tendências democráticas mortificadas até então. E quando a liberdade do Congresso foi recuperada, trabalhou pela aprovação de todas as liberdades e direitos humanos que tinham sido pisoteados durante o franquismo, como a liberdade de imprensa, de divórcio, de aborto, a liberdade sindical, os direitos dos trabalhadores, a igualdade dos sexos, a dignidade até então humilhada da mulher e dos credos religiosos. Era chamado de EL PAÍS da defesa das liberdades.
O fato de o EL PAÍS ser mais do que um jornal que perturbava os restos do franquismo ainda vivos é revelado pelo atentado que o jornal sofreu em 30 de outubro de 1978, que matou o jovem empregado Andrés Fraguas, de 19 anos, e feriu dois colegas. Poderia ter sido uma matança, pois o pacote havia sido endereçado ao então editor de esportes que trabalhava em uma redação com outros 40 colegas. Desde então, o diretor Cebrián passou a se deslocar com uma escolta policial, apareceu em uma lista de condenados à morte e teve que dormir até com a polícia dentro de casa.
Mas foi na tarde e noite de 23 de fevereiro de 1981 que o EL PAÍS mostrou ser mais do que um jornal: havia se tornado em pouco tempo um símbolo da nova democracia. Naquele dia, os militares sequestraram o Congresso com todos os congressistas e o Governo dentro. Foram horas dramáticas que pressagiavam um golpe de Estado. Uma das primeiras vítimas dos golpistas foi o EL PAÍS. Soube-se que as forças armadas estavam se dirigindo ao jornal. O diretor Cebrián e seu estafe se reuniram com urgência e prepararam uma edição especial com o título “Estamos com a Constituição”. Escreveu que qualquer coisa que pudesse acontecer naqueles momentos com os jornalistas, o “EL PAÍS estaria ao lado da Constituição”. Feita rapidamente, aquela edição especial foi distribuída por voluntários nas ruas enquanto o Congresso continuava sob sequestro. Dentro do Congresso, soube-se que a tentativa de golpe devia ter fracassado quando chegou o primeiro exemplar da edição especial do EL PAÍS.
Desde então o jornal nunca se afastou de sua essência de diário democrático social liberal, defensor de todas as liberdades civis e políticas e dedicado a regenerar a Espanha humilhada pelo franquismo para devolver-lhe todas as liberdades que tinham sido pisoteadas durante 40 anos.
Amo este jornal porque nos meus 44 anos de trabalho nele ninguém jamais impôs normas ou censuras ao que escrevi. Foi e é um jornal que recompensa o profissionalismo e a liberdade de expressão. Já nasceu como algo mais que um jornal. Seu primeiro diretor, Juan Luis Cebrián, com apenas 30 anos ―que era um dos poucos jornalistas que já havia trabalhado fora do país e falava línguas estrangeiras naquela Espanha fechada para o exterior―, tomou imediatamente algumas decisões que naquele momento causaram estranheza, mas o tempo lhe deu razão. O empresário do novo jornal, Jesús de Polanco, e seu fundador, José Ortega, deram todo apoio ao jovem diretor.
Em vez de fazer um jornal chamativo naqueles momentos de explosão democrática, com manchetes grandes e berrantes, Cebrián exigiu que fosse, ao contrário, contido. Quis o formato tabloide e exigiu que desde o primeiro dia o jornal abrisse as primeiras páginas com as informações enviadas de todo o mundo pelos correspondentes. E deu duas razões que foram proféticas para aquela decisão: que a Espanha ainda estava muito quente política e emocionalmente para fazer um jornal exaltado e que a nação havia estado fechada para o mundo exterior durante 40 anos. Portanto, a primeira coisa que precisava fazer era abrir as janelas para o mundo, para que os espanhóis começassem a saber o que estava acontecendo fora de suas fronteiras. Cebrián foi o primeiro diretor mundial europeu do IPI (International Press Institute) em defesa da liberdade de expressão, do qual participavam então mais de 400 diretores de jornais de todo o mundo.
Todo ano os diretores se reuniam em um país diferente. Meses antes da queda do Muro de Berlim, a reunião do IPI aconteceu em Berlim. Eu era correspondente na Itália e no Vaticano. O diretor me perguntou se eu poderia conseguir que o então mítico bispo brasileiro Dom Hélder Câmara, perseguido pela ditadura e que teve as paredes de sua casa crivadas de balas, fosse falar a todos aqueles diretores de jornais do mundo. Não foi fácil convencer aquela figura frágil de corpo e forte de alma a ir a Berlim. No final, foi. E lembro que foi um dos momentos mais densos que vivi na minha vida de jornalista. Dom Hélder falou apenas 15 minutos. E disse tudo. Defendeu com tal paixão e convicção os valores da liberdade como fundamento da essência humana e religiosa que, antes de deixá-lo terminar, os 400 diretores de jornal se levantaram para aplaudi-lo de pé.
Desde aquele dia, como se isso fosse possível, eu me apaixonei ainda mais por este jornal, que depois da triste e dura experiência franquista me revelou a grandeza dos valores da liberdade sem os quais o ser humano acaba reduzido à pior das escravidões, como é a do pensamento e dos sentimentos que, ou são livres, capazes de voar como pássaros, ou nos levam ao inferno da ignorância e da barbárie.
Escrevo estas linhas para os queridos leitores do EL PAÍS Brasil que começam a aventura do sacrifício de pagar para desfrutar de sua leitura. Estou convencido de que os leitores de verdade, aqueles que já se sentem em família, não nos abandonarão. O Brasil é fundamental para a experiência do EL PAÍS como o jornal mais lido em língua espanhola do mundo. Por isso é hoje também o jornal do continente latino-americano. E já escrevi uma vez que esse continente fica ferido sem a presença do Brasil. Experimentem arrancar o Brasil do mapa da América Latina e verão como fica deformado e mutilado. E hoje o EL PAÍS é lido no Brasil com a mesma força e interesse ou mais do que no resto do mundo.
A Espanha e a América Latina precisam do Brasil como ele precisa de um jornal que fale não apenas sobre ele, mas também revele as veias abertas do mundo. Hoje que a comunicação se tornou universal, nenhum país será econômica e intelectualmente próspero sem ter suas antenas conectadas com o mundo inteiro. E o EL PAÍS digital hoje é isso, uma janela aberta para o universo que nos diz todas as manhãs como o nosso mundo respira, com suas alegrias e tristezas. Fechados em nossa casca de ovo, sem esse contato fundamental com o coração do mundo, onde gente como nós sofre e se alegra com a vida, ficaríamos reduzidos a uma aldeia fora da História.
O EL PAÍS trará a vocês todas as manhãs a pulsação do mundo, suas dores e suas conquistas e todos nos sentiremos mais solidários e enriquecidos para melhor entender que vivemos juntos as mesmas tragédias e as mesmas esperanças.
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