Inflação dispara na América Latina com incerteza política, crise climática e incentivos ao consumo
Brasil só fica atrás da Argentina no ranking do continente. Alimentos, bebidas, transporte e até eletricidade custam cada vez mais na região, mas especialistas dizem que a maior aceleração dos preços acabou e que uma estabilização está por vir
No último ano, além do aumento do desemprego e da pobreza, os latino-americanos têm pago cada vez mais por comida e alguns serviços. A inflação chegou gradualmente e, em alguns casos, de repente, como um novo imposto que não precisou passar por aprovação legislativa. A recuperação da economia mundial e as interrupções nas cadeias de abastecimento são parcialmente responsáveis, mas também existem fatores endógenos em alguns países que contribuíram: incerteza política, condições climáticas e um aumento extraordinário no consumo.
Milhares de peruanos cuidam de cada gota de óleo de cozinha agora que o preço subiu mais de 100%. No Brasil, gás, gasolina e eletricidade ficaram mais caras, assim como os alimentos. No México, o aumento no preço do combustível mais utilizado nas residências, o gás LP, levou o Governo federal a estabelecer preços máximos e até a criar uma distribuidora estatal. Na Colômbia, o quanto se paga agora por um chocoramo, um doce popular, virou tendência nas redes. É uma pílula amarga, mas os especialistas enxergam que a maior aceleração dos preços acabou e uma estabilização está por vir.
“O que vimos nos últimos meses é uma confluência de fatores”, diz William Jackson, economista-chefe para mercados emergentes da Capital Economics em Londres. Pelo menos no México, Brasil, Colômbia, Chile e Peru, a inflação superou as metas de seus bancos centrais, que estão entre 2% e 4%. No Brasil, a pesquisa Focus, que reúne as projeções de mais de 100 instituições financeiras para indicadores econômicos, revela a expectativa de chegar a 7,27% de inflação oficial este ano, dois pontos percentuais acima do teto da meta (5,25%). O mercado vem subindo a projeção de alta há 21 semanas.
Para Jackson, o cenário aponta para um teto da alta no continente. “É muito provável que o maior aumento de preços já tenha ocorrido. As taxas de inflação devem começar a cair no restante do ano na maioria dos países latino-americanos, apesar de ainda persistirem alguns riscos, como eventos climáticos e moedas fracas“, acrescenta o especialista.
Recuperação global
A recuperação das economias avançadas levou ao aumento dos preços do petróleo, de modo que seus derivados, como a gasolina, também tiveram alta nos preços. O custo do combustível como fonte de energia tem um efeito dominó, impactando muitos outros bens de consumo e serviços, incluindo transporte. Autoridades de Equador, Brasil, República Dominicana e Chile, por exemplo, incluíram o transporte como um dos itens que tiveram os maiores aumentos neste verão.
No México, o Ministério da Energia emitiu uma “diretriz de emergência” no mês passado, forçando o regulador do setor a impor taxas máximas sobre o preço do gás LP, que é usado por 80% dos lares mexicanos. Em resposta a isso, o sindicato das empresas de abastecimento e distribuição de gás fez uma breve greve. Enquanto isso, o Governo mexicano criou, em um mês, sua própria distribuidora, a Gas Bienestar, que entra em operação nesta sexta-feira.
Ao mesmo tempo, os confinamentos intermitentes vistos em todo o mundo, especialmente na Ásia, interromperam as cadeias de abastecimento de muitos produtos exportados para a região da América Latina. Em todo o mundo, explica Jackson, o confinamento e o cotidiano de trabalho dentro de casa impulsionaram a demanda por bens de consumo e eletrodomésticos, adicionando à mistura um aumento na demanda por coisas cuja oferta já estava caindo. Isso os torna mais caros. “Como os países latino-americanos reabriram suas economias, também vimos um aumento no turismo local, então hotéis e companhias aéreas aumentaram seus preços”, diz Jackson.
Clima
Brasil e México sofreram secas este ano, afetando a agricultura e a pecuária e, portanto, o preço dos alimentos. O Brasil é amplamente dependente de energia hidrelétrica e, devido aos baixos níveis de barragens, teve que importar a geração de eletricidade. Somente no mês de julho, a energia elétrica subiu 8% no país, o que impacta o preço de muitos bens. Nos últimos 12 meses, o preço da carne subiu, em algumas partes do país, até 38%. “Com as mudanças climáticas, os eventos mais extremos vão se tornar cada vez mais comuns, de acordo com o último relatório do IPCC”, diz Jackson, “embora as condições variem, em geral, esses saltos no custo dos alimentos se tornarão mais comum“.
Incerteza política
O Peru é, talvez, o país que viu o preço de seus alimentos e bebidas aumentar mais rapidamente nos últimos meses. A chegada à presidência de Pedro Castillo, um candidato radical de esquerda, gerou forte desconfiança e saída de capitais, razão pela qual o sol peruano se desvalorizou em relação ao dólar. Isso agravou a inflação no Peru, já que muitas matérias-primas e produtos que precisam ser importados estão muito mais caros. A situação é tal que a Associação Peruana de Consumidores e Usuários (ASPEC) pediu ao público que não comprasse produtos que subiram de preço para “punir os especuladores”, que, aproveitando a instabilidade, aumentam seus preços sem ter um motivo de fundo.
“A situação política cria incerteza, o dólar subiu, isso cria efeitos na bolsa, alguns produtores dizem que os insumos estão subindo”, disse Crisologo Cáceres, presidente da ASPEC, em um comunicado. “No Peru, no setor de alimentos há oligopólios que combinam entre si aumentar o frango, oxigênio, papel, botijão de gás ou remédios”.
Na Colômbia, uma proposta de reforma tributária que teria aumentado a base tributária ao incluir a classe média, impactando diretamente o bolso de milhões de cidadãos, gerou violentos protestos que duraram meses. As manifestações causaram transtornos na distribuição e produção de alguns bens, o que também contribuiu para a inflação naquele país, explica Jackson.
Consumo ‘turbinado’
Enquanto no Peru pede-se que o público consuma estrategicamente, no Chile a política econômica levou a um aumento no consumo tão alto que impulsionou a inflação. “Com exceção do México, as economias da América Latina estão agora em processo de reabertura e, no Chile, isso está acontecendo de forma muito forte”, diz Jackson. Segundo dados da Universidade Central, os três saques de 10% dos fundos de pensão que o Governo permitiu durante a quarentena para que os chilenos pudessem combater o desemprego e a falta de renda mobilizaram 50 bilhões de dólares. “O que estamos vendo é que, além de ser um país onde havia maior apoio nas transferências do Governo, o dinheiro que foi retirado das pensões gerou uma espécie de consumo-turbo”.
Em relatório, o professor e diretor da cadeira de engenheria comercial da Universidade Central Juan Rojas declarou: “A injeção dessa quantia no consumo gera mudanças indiscutíveis na economia chilena. O processo sustentado de maior circulação de dinheiro disponível implica também numa elevação do nível dos preços ao consumidor, que faz com que o valor do dinheiro caia e provoque a inflação, que este ano se aproximaria dos 4%“.
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