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Crise do coronavírus joga pelos ares dogmas da política econômica

Mais rápida que em recessões anteriores, resposta monetária e fiscal dos países foge do cardápio de soluções esperadas. São várias as lições aprendidas para o futuro

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Times Square, em Nova York, em 26 de agosto.Noam Galai (Getty Images)
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Mario Draghi, o grande artífice da recuperação europeia depois da eterna crise da década passada (primeiro a global, depois a das dívidas soberanas), reapareceu em cena na semana passada após meses nos bastidores. Foi na sua Itália natal, com uma dupla mensagem poderosa —os jovens estão em primeiro lugar, e a avalanche de dívida pública que tirará a Europa e o mundo desta crise do coronavírus deve, sem exceção, ser destinada a gastos produtivos— e uma citação de John Maynard Keynes que vem a calhar para os dias que correm: “Quando os fatos mudam, eu mudo de opinião. E você, faz o quê?”. A pergunta foi respondida em tempo recorde por Governos e bancos centrais de todo o mundo, que adaptaram o cardápio de opções possíveis às circunstâncias radicais que se deram: uma pandemia mundial, confinamentos rigorosos, o maior afundamento do PIB em quase um século. Se a Grande Recessão de 2008 sacudiu a árvore dos estudos econômicos, esta crise está a caminho de modificar paradigmas esculpidos em pedra durante décadas. O primeiro match point já foi salvo: a recessão será cavalar, mas a depressão econômica que muitos temeram nos primeiros compassos da pandemia pode ser descartada. Ao menos por enquanto.

A crise ainda está distante de chegar ao seu epílogo: mesmo com uma rápida melhora da situação sanitária —não é preciso nem dizer que se os repiques continuarem a coisa vai piorar: basta ver a desaceleração do gasto com cartão—, a maioria dos países ocidentais só recuperará o nível do seu PIB, na melhor das hipóteses, em 2022 ou 2023. As cicatrizes serão profundas, mas a esta altura o filme já deixa algumas lições aprendidas de episódios anteriores. Sobretudo na Europa. “À beira do abismo você toma decisões que nunca pensou que fosse tomar”, afirma Xosé Carlos Árias, catedrático da Universidade de Vigo (Espanha). “Isto vai deixar um legado de política econômica em longo prazo: o paradigma está mudando, e está mudando a sério. Tudo o que funcionou e está funcionando é o contrário do que nós, professores de Política Econômica, passamos décadas dizendo aos alunos.”

“Está ocorrendo uma mudança profunda na economia, dessas que só vemos uma vez por geração (...). A pandemia marca o início de uma nova era”, dizia a insuspeita The Economist em um editorial de julho. A guinada é drástica: a crise estirou os limites do possível (ou do que até agora se acreditava possível). No aspecto fiscal, com um plano europeu que, se não é uma mutualização de dívida, se parece muito; no aspecto monetário, com os bancos centrais em sua versão mais ativista para sustentar os custos de financiamento dos Estados quando mais necessitam. “Os ditos limites não o eram. O mundo aprendeu que há outras ferramentas e que funcionam”, aponta Ángel Talavera, da consultoria Oxford Economics. “Está sendo evitada uma Grande Depressão: a resposta de política econômica foi surpreendentemente boa, muito acima das expectativas, e se compreendeu claramente que o perigoso seria pecar por falta, não por excesso”. Foi, completa Alicia García Herrero, do think tank Bruegel, “a resposta fiscal e monetária mais rápida da história. Vários dogmas foram quebrados, e a ideia de que a expansão fiscal pode ser menos custosa do que pensávamos graças ao financiamento monetário ajudou a testar os limites”.

Depois da Grande Recessão de 2008 e 2009, a Europa reagiu tarde na política monetária e mal na política fiscal: sempre temendo a inflação —logo se veria seu erro—, Jean-Claude Trichet subiu o preço do dinheiro em abril e em julho de 2011, quando já fermentava no sul da UE a crise de dívida soberana que deixou euro contra as cordas. Foi preciso que chegasse Draghi para emendar a falha, meses depois, em grande estilo: com seu já famoso —e agora tão surrado— “farei tudo o que precisar ser feito para salvar o euro”. O BC europeu esperou até 2015 para lançar uma compra maciça de dívida nos mercados (o famoso QE, sigla em inglês de “flexibilização quantitativa”); naquela época, o Federal Reserve já fazia seu terceiro programa desse tipo. No aspecto fiscal, o domínio alemão e holandês impedia algo que se parecesse com uma política verdadeiramente contracíclica: aqueles anos deixaram no dicionário econômico a “austeridade expansiva” e outros paradoxos similares.

Tudo isso hoje são águas passadas. Christine Lagarde, atual presidenta do BC europeu, levou poucas horas para desdizer sua gafe do começo do confinamento —“Não estamos aqui para reduzir as taxas de risco” —, e desde então seguiu com convicção os passos de seu antecessor. Sua firmeza —mais compra de dívida, liquidez a rodo — deu resultado: apesar do desabamento de dois dígitos no PIB, Espanha e Itália pagam hoje para se financiar o mesmo que pagavam antes do vírus. “Desta vez, tanto as autoridades fiscais como as monetárias logo perceberam que isto é, na verdade, um choque global, que o risco moral não é algo que deva preocupar e que é preciso fazer tudo o que for necessário”, avalia Ugo Panizza, do Graduate Institute.

Do outro lado do Atlântico, o presidente do Fed (banco central dos EUA), Jerome Powell, aproveitou nesta semana seu pronunciamento em Jackson Hole para flexibilizar sua meta de inflação —que já é, afirmou, uma preocupação longínqua— e pôr o emprego um degrau acima no duplo mandato da instituição: uma reviravolta inimaginável há apenas uma década, mas que na prática está há anos sendo aplicada. Até alguns bancos centrais de países emergentes, historicamente temerosos —com motivos— da hiperinflação, saíram a campo desta vez comprando dívida em grande escala. É mais um sinal de que os tempos mudaram e algumas máximas já não se aplicam mais: poucos guardiões da ortodoxia a todo preço elevaram a voz.

Mas a grande virada no roteiro talvez tenha sido na política fiscal. Com um republicano na Casa Branca, o dinheiro quase grátis transformou os EUA em paladinos do keynesianismo pela via dos fatos: com um estímulo trilionário —com tri— à altura de pouquíssimos países, que foi capaz de sustentar a renda disponível para as famílias durante a quarentena. Dívidas que superam o valor do PIB já são o novo normal no Ocidente. E Kristalina Georgieva, diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), não se furtou a deixar claro que correm novos ares e que os tratamentos de austeridade são coisa do passado. Ao menos por enquanto: o objetivo deve ser sair desta crise com as mínimas cicatrizes. “Vocês não ouvirão o FMI dizer isto frequentemente: gastem. Mas é o que estamos dizendo aos Governos: gastem o quanto puderem, mas guardem os recibos, assegurem-se de prestar contas de como se usa o dinheiro”, dizia ela em junho neste jornal.

Na Europa, o terremoto da pandemia também moveu fundamentos fiscais que se acreditava estarem fixos. O pacto de estabilidade e crescimento logo virou letra morta. Com o fundo de recuperação, o Velho Continente atravessou o Rubicão da emissão de bônus. Parece de outro século aquilo de “não haverá mutualização da dívida enquanto eu viver” na boca de Angela Merkel, hoje uma das patrocinadoras e mais firmes defensoras da mudança no roteiro. Se na década passada era a Alemanha que liderava o grupo dos falcões, hoje é a Holanda —um país importante, mas de muito menor peso específico— que tentou torpedear qualquer avanço. Com sucesso limitado, por ser brando: conseguiu cortar o volume dos subsídios, mas não conseguiu torpedeá-lo, como pretendia. “Essa explosão da política fiscal é justificada, mas nem sempre a forma como o dinheiro é gasto”, diz o economista francês Charles Wyplosz. “Quando um Governo anuncia que aumentará seus gastos em bilhões de euros, todos os grupos de interesse usam sua enorme influência para obter sua parte do bolo. É preciso focar na qualidade do gasto”.

Paralelamente, e à base de resgates —basta ver o que aconteceu com as maiores companhias aéreas europeias—, o ponto de equilíbrio entre as esferas pública e privada mudou. “Aprendemos que quando o sistema de mercado recebe um golpe forte, como o do coronavírus, pode implodir e só uma força externa, como o Estado, pode estabilizá-lo. Isso afetará nossa visão do equilíbrio de poder entre mercados e Governos”, destaca Paul de Grauwe, da London School of Economics.

Alguns dogmas foram pelos ares, também no que se refere ao mercado de trabalho: diante da adesão dos EUA à destruição criativa pura e simples, a maioria dos países europeus, liderados pela Dinamarca, lançou ambiciosos —e onerosos— programas de manutenção de emprego para evitar uma ruptura do nexo entre trabalhadores e empregados que piore ainda mais as coisas a médio prazo. Chame-se de ERTE, furloughs, kurzabeit ou chômage partiel, o uso desses instrumentos evitou um aumento fulgurante do desemprego. “Isso não podia ser feito até que se pôde”, aponta Talavera. “É notável a rapidez com que os países se adaptaram a esse tipo de política. Não existe uma política neutra, todas têm seu lado negativo, mas a alternativa de que o mercado escolhesse os vencedores era pior”. A Alemanha e em menor medida a Espanha já mostraram sua disposição de estender esses esquemas, mas o mais complicado virá daqui a alguns meses, quando esse respirador artificial tiver de ser desconectado e evitar a necessária transferência de trabalhadores entre setores.

Um trânsito de meio século

Os economistas ocidentais saíram da década de setenta com uma máxima clara: a inflação era o maior risco que enfrentavam e praticamente toda a engrenagem da política econômica se concentrou em mitigá-lo. “Mas a mensagem que emergiu da crise financeira global e, mais ainda, da atual, é que em contextos muito adversos precisamos de uma maior coordenação entre a política fiscal e a política monetária”, frisa Panizza. “Isso não quer dizer que tudo vale a pena, que não haja restrições orçamentárias e que os gastos públicos sempre poderão ser financiados imprimindo dinheiro, como dizem os defensores da teoria monetária moderna. Mas que, no curto prazo, a política monetária pode criar espaço fiscal mantendo baixos os custos de financiamento e oferecendo suporte”.

Se os bancos centrais não hesitarem, o risco de uma crise financeira não se alastrará. E como o ex-economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard, lembrou recentemente no EL PAÍS, “enquanto os juros permanecerem administráveis, não haverá necessidade de cortes ou aumentos de impostos disparatados e poderemos fazer frente à dívida que teremos de assumir daqui até o fim da crise sem ter de fazer loucuras depois”. Com taxas de juros zero —o Fed acaba de deixar claro que durarão muito tempo— e a liquidez a salvo, as águas continuarão baixando mais ou menos tranquilas. A grande incógnita é o que acontecerá depois. Também as consequências de esticar a corda da política econômica além dos limites que acreditávamos inamovíveis. “Cuidado com a aceitação acrítica das abordagens radicalmente heterodoxas, porque a economia não pode se mover indefinidamente sobre um saco de dívidas”, finaliza Arias. “Agora não deve ser a prioridade, mas sim no médio prazo.”

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