Clarice, Vinicius, Billie Holiday... a mistura selecionada do tabuleiro de Bethânia
Cantora leva a potência e dramaturgia de sua voz a seu novo podcast ‘Tabuleiro’, onde oferece “músicas, textos e tal”, como conta em entrevista ao EL PAÍS
Maria Bethânia (Santo Amaro, 75 anos) é cantora, mas também é costureira. Desde o início da sua carreira, ela alinhava e ata como ninguém suas duas grandes paixões, a música e a literatura, com toda a potência e dramaturgia de sua voz e seus gestos. Tudo começou no icônico show Rosa dos Ventos, que completou cinco décadas este ano, no qual o diretor e dramaturgo Fauzi Arap deu-lhe para declamar um trecho do conto O mineirinho, de Clarice Lispector. Não à toa, é com ela que Bethânia inaugura o seu Tabuleiro, podcast da Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles (IMS), em que lê textos de seus autores favoritos, intercalados com as canções que marcam sua memória afetiva. E o que tem no tabuleiro literário de Bethânia? Ela gargalha antes de responder à pergunta: “Tem tudo que eu gosto, tem Clarice, poesia portuguesa, Vinicius de Moraes... Dei esse nome porque me senti meio baiana de tabuleiro, ali oferecendo músicas, textos e tal”, conta ela ao EL PAÍS. “Tive muita liberdade para fazer tudo, foi um processo solto. E me sinto muito alegre em poder fazer coisas tão gostosas, principalmente neste momento do país”, acrescenta ela, que insiste em chamar a empreitada de “programa de rádio”.
Recém-eleita nova imortal da Academia de Letras da Bahia, depois de lançar em julho o álbum Noturno, Bethânia conta que, na infância, não pensava ser nem leitora nem cantora, mas, ao lado dos sete irmãos, sempre escutou o pai lendo poesia em casa. “Esse foi meu primeiro contato com o mundo do cancioneiro”, recorda. Ela também lembra de quando, na adolescência, escutou pela primeira vez a voz solene de Mahalia Jackson cantar Summertime, mais ou menos na mesma época em que o irmão Caetano Veloso ganhou a assinatura da revista Senhor e indicou-lhe a leitura da crônica Os desastres de Sofia, escrita por Lispector. “Fiquei alucinada, fiquei louca pelo texto dela! Achei aquela literatura tão livre, tão própria, com tanto vigor... É tudo como eu penso, como eu sinto”, descreve.
As lembranças se misturaram para sempre em sua existência e marcam um dos pontos no intricado bordado do primeiro episódio de Tabuleiro, que mescla a escritora brasileira com o blues e o jazz. “Vejo a mesma liberdade e força de Clarice nessa música negra, queria ler Clarice com esse som. A música negra norte-americana é a melhor do mundo, só emparelha com a nossa”, afirma. Em parceria com o poeta Eucanaã Ferraz, ela costura trechos de Água Viva, A maçã no escuro, A hora da estrela e outros escritos com canções como Pirate Jenny (cantada por Nina Simone), Stormy Weather (na voz de Billie Holiday) ou Alabama Blues (de J.B. Lenoir), muitas delas com um forte tom político que, a princípio, poderiam causar estranhamento se contrapostas à literatura introspectiva de Lispector. “Tem muita gente que estranha muita coisa em tudo que eu faço. Desde sempre”, ri Bethânia.
Em sua voz, no entanto, tudo faz sentido. Principalmente quando a escutamos dizer, ao resgatar a crônica Dies irae: “A ira é o que me toma. E acho certo roubar para comer”. A frase, dita “com o coração na mão”, é uma denúncia da realidade do país onde mais de 19 milhões de pessoas passam fome e ossos de animais são vendidos a preços inflacionados nos mercados. É por notícias como essa que Bethânia ainda prefere não falar do Brasil, como já havia dito ao EL PAÍS em fevereiro passado. “O artista tem essa bênção de Deus de poder escolher o que quer fazer. A força da escrita de Clarice é um registro disso. Ela tinha que escrever e escrevia com potência, sem se importar se entenderiam ou não, se estranhariam ou não ou se sequer gostariam. Se eu tenho que fazer, eu faço”.
Com seis episódios, lançados sempre às quintas-feiras, seu Tabuleiro trará homenagens a Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, seu amado Fernando Pessoa e vozes como as de Amália Rodrigues, Cazuza ou Luciano Pavarotti. Caetano Veloso será costurado com textos de Arthur Rimbaud, Lord Byron e Augusto de Campos, e Chico Buarque virá com a elegância de Drummond e outros apaixonados pelo Rio de Janeiro. Em um episódio inteiramente dedicado ao Brasil, modernistas como Mário ou Oswald de Andrade reverberam questionamentos sobre o país e se atualizam nas ideias de Lina Bo Bardi ou do líder yanomami Davi Kopenawa, enquanto seus textos dialogam com canções de Milton Nascimento, Luiz Gonzaga ou Nana Caymmi.
Todos eles referências do que Bethânia leu e escutou no último ano e meio, muito do que sempre falou ao seu coração. “Na quarentena, fiquei com os meus tradicionais, os meus escolhidos de sempre. Ouvi muita música negra, muita música brasileira, li meus poetas portugueses... Li também esse livro tão bonito, Torto Arado, que foi uma agradável surpresa”, conta. Ressalta, no entanto, que, quando se trata de música e leitura, não é disciplinada. “Se dá vontade naquela hora, eu leio. Mas estou atrasada. Não li ainda, por exemplo, o livro novo de Chico [Buarque, que publicou Anos de chumbo e outros contos, pela Companhia das Letras]. Vou ler qualquer hora...”
Apesar de sua paixão pelas letras, Bethânia descarta, categoricamente, qualquer possibilidade de aventurar-se na escrita. “Eu não! Eu quero é fazer show, eu sou cantora! Eu quero cantar, subir no palco, levar alegria, desejo de amor para os que me ouvem. Eu quero meu palco”, brada e ri a artista que escreve apenas para si e, quando o faz, queima os papéis de suas anotações. Ela nega qualquer banzo ou saudosismo —inclusive na música, em que considera o funk “uma das maiores revelações brasileiras”. “A nostalgia não serve para nada, as coisas bonitas não morrem, permanecem”, diz.
É por isso que, apesar de desiludida com o país, celebra sempre seu povo. “Abri minha live no ano passado dizendo que eu queria vacina. Fiquei feliz em ver todos com juízo, se vacinando. O povo brasileiro é deslumbrante, é inteligente, não cai em vacilo ou cilada.” Ela também comemora a cultura pulsante que se renova constantemente com trabalhos como o do seu irmão. “O novo disco de Caetano [Meu coco] é uma revelação linda, um farol para o nosso tempo, traz as reflexões deste momento, mas também traz suavidade e doçura”. Como no seu podcast (ou programa de rádio), Bethânia faz eco de Lispector em Água viva: “Pode-se transformar a dor em prazer”.
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