Bethânia: “Não gosto mais de falar do Brasil. Tenho vontade de chorar”
Artista conta de sua tristeza com o país, dá detalhes de álbum futuro e da ‘live’ que fará neste sábado, no mesmo 13 de fevereiro em que estreou no show ‘Opinião’, há 56 anos
Maria Bethânia conta que o diretor televisivo Boninho a aconselhou a falar bastante na live que fará neste sábado (dia 13, às 22h, pela Globoplay, aberto também para não assinantes). Sua sugestão foi no intuito de evitar o vazio entre as músicas na ausência dos aplausos, já que não há plateia. A cantora sorriu:
— Falei para ele ficar tranquilo, porque eu sou a cantora brasileira que mais cola uma música na outra, seja com um texto, com uma introdução… Eu odeio esses vazios, não gosto de dar espaço pra eles. Pode ser Olhos nos olhos, Negue... Eu espero o aplauso, mas não conto com o aplauso. Muita aula do Fauzi — diz a cantora, citando Fauzi Arap, diretor e dramaturgo que foi seu grande mestre na sabedoria de costurar texto e música nos shows, uma de suas marcas.
Rosa dos ventos, show fundamental da parceria de Bethânia com Fauzi, completa 50 anos em 2021 e ele será celebrado na live deste sábado, sua primeira experiência no formato, transmitida diretamente da Cidade das Artes, com direção de LP Simonetti. Não é a única efeméride que a apresentação marca. Bethânia lembra —“perfeitamente”, ela ressalta— do 13 de fevereiro de 1965, dia de sua estreia no show Opinião, em plena ditadura militar:
— Lembro minha chegada no Teatro Opinião, entrando com Caetano. Tereza Aragão me recebeu e me levou ao camarim. Lembro do camarim muito pequeno, mas caloroso, quentinho. Uma luz âmbar, um espelho quadrado, simples. O camarim nu — descreve, detalhadamente.
Dias antes, Bethânia havia chegado da Bahia. Estava ali para substituir Nara Leão no espetáculo. Ela já cantava em Salvador, mas o Opinião marcaria sua estreia de impacto nacional.
— O Grupo Opinião agendou um cabeleireiro para mim um dia depois de eu ter chegado, eles não gostaram do meu cabelo — recorda. — Passei a manhã inteira naquele cabeleireiro. Não suportei como ficou. No camarim, no dia da estreia, me via e pensava: “Esse cabelo não é meu”. Minutos antes de entrar, um grande cenógrafo, amigo de Tereza, viu que eu não estava satisfeita, pegou meu cabelo e fez aquele coque do Carcará. Perguntou se estava bom, eu falei que estava bem melhor do que antes. Fui pra cena feliz, descalça, para cantar É de manhã, de Caetano. Tinha conseguido convencê-los a entrar com essa música do meu irmão, na época um desconhecido. E o coque se tornou uma marca.
Bethânia lembra que estava tranquila (“Tereza estava muito nervosa, Caetano também, eu não”). Mas não fria. Havia a ansiedade para entrar no palco e mostrar o que tinha preparado. A mesma sensação que experimenta às vésperas de fazer sua primeira live, 56 anos depois daquele show.
— É exatamente assim, até hoje. Por isso que gosto de ensaiar, e muito. “Eu sei, eu aprendi, é isso que eu escolhi, eu vou mostrar” — afirma Bethânia, adiantando que o Opinião será lembrado brevemente na live, “com uma estrofe”. — Não cantarei Carcará. Mas mostrarei sucessos e algumas coisas de Noturno.
Noturno é o disco que ela lança nos próximos meses, com canções de compositores como Adriana Calcanhotto, Chico César e Tim Bernardes, algumas delas extraídas do show Claros breus, de 2019.
A ansiedade tranquila de Bethânia se firma também na certeza do 13 de fevereiro como “o dia da boa sorte, o dia da benção”. Nessa data, em 2016, a Mangueira fechou, como grande vencedora do Carnaval daquele ano, o Desfile das Campeãs com o enredo Maria Bethânia: a menina dos olhos de Oyá, em homenagem à cantora, outra memória que será invocada na live, na qual ela terá o acompanhamento de dois violões, contrabaixo e percussão.
— Dia 13 de fevereiro é inesquecível. É no mês de Nossa Senhora da Purificação, sempre estou em Santo Amaro para as festividades, que este ano não aconteceram — lamenta. — Sempre reservo o 13 de fevereiro com um amigo, para estourar um champanhe, beber uma cerveja. É um dia escolhido, grande. As pessoas têm um pouco de cisma com o 13. Pra mim, é o avesso disso.
O lamento de estar longe de Santo Amaro nesta época ganha contornos mais fortes sob a luz (as trevas) desta era de fake news. Um vídeo que mostrava Bethânia e Caetano numa festa em Santo Amaro, feito em 2019, foi compartilhado como se fosse deste último réveillon ―ou seja, eles estavam sendo falsamente acusados de participar, durante a pandemia, de um evento com aglomeração e sem uso de máscaras.
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— Nem vi o vídeo, mas claro que soube dele — conta Bethânia. — Soube também que foi desmentido. O que no fim é inútil, porque todo mundo sempre soube que não é verdade, a questão aí não é essa. O mundo virou isso, enfim. A pandemia chegou como uma marca de ferro dessa coisa vulgar, pequena, perversa e má que vivemos. E o Brasil parece não ver que tem saída. Mas uma hora vai ver.O Brasil de 2021 que Bethânia descreve não se assemelha em nada ao país de beleza profunda e luminosa que ela cantou com ternura em Brasileirinho, disco de 2003. Mas ela afirma que aquela pátria de sussuaranas, Heitor Villa-Lobos e cigarros de palha ainda permanece:
— O Brasil ainda é aquele, mas está adormecido, apavorado, acuado, doente e triste. Não gosto mais de falar do Brasil. Tenho vontade de chorar.
Noturno, novo disco de Bethânia, não é uma resposta a esse estado de coisas (“Não me inspira esse Brasil”). Mas, ela esclarece, o álbum não ignora seu chão, seu tempo. Seu repertório inclui, por exemplo, 2 de junho, lançada por Adriana Calcanhotto em 2020 sobre a morte do menino Miguel Otávio, que caiu do prédio de alto padrão em Recife enquanto a mãe empregada doméstica passeava com o cachorro da patroa ―o caso de marcada negligência dos empregadores expõe (e a canção evidencia) nós profundos da questão racial e da desigualdade social que formaram e formam o Brasil.
— Noturno invoca uma sobriedade, uma calma, uma maturidade — define Bethânia. — Mas é um disco de uma mulher de 74 anos, cantora brasileira, dentro da pandemia, com as angústias e as situações implicadas aí. Então, traz também uma canção como Lapa santa, inédita de Roque Ferreira e Paulo César Pinheiro, que canta este Brasil de hoje, de um jeito forte, nordestino, íntegro. Num dos versos, ela pergunta: “Cadê o dono da casa?”.
No país que não vê saída, a pergunta poderia estar inscrita na bandeira.
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