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Cinco poemas para lembrar Maria Lúcia Alvim

Poeta mineira, que lançou livros de inéditos em 2020 após hiato de 40 anos, morreu de covid-19 aos 88 anos

A poeta Maria Lúcia Alvim, em imagem do seu último livro, 'Batendo passo'.
A poeta Maria Lúcia Alvim, em imagem do seu último livro, 'Batendo passo'.Sebastião Rocha Reis (Divulgação)

A poeta mineira Maria Lúcia Alvim morreu nesta quarta-feira por complicações da covid-19 em Juiz de Fora, Minas Gerais. A autora tinha 88 anos e lançou, no ano passado, um livro de poemas inéditos após quatro décadas de hiato. Batendo Pasto (Relicário, 2020) foi planejado por Maria Lúcia Alvim como uma obra póstuma, mas Guilherme Gontijo Flores e Ricardo Domeneck a convenceram a publicá-lo. Mineira de Araxá (1932), a poeta é irmã de outros dois nomes da poesia contemporânea e brasileira Francisco Alvim e Maria Ângela Alvim. “Estou adorando que os jovens se aproximem de mim e de minhas coisas. Quero que cheguem cada vez mais perto, a um palmo de distância de mim, para a gente poder se entender um pouquinho”, disse ela em entrevista à Tribuna de Minas sobre o lançamento do novo livro. “Estou adorando. Depois que você fica velho, fica se odiando. É horrível.” A seguir, Lígia Gonçalves Diniz, professora de literatura na UFMG e autora de Imaginação com presença: o corpo e seus afetos na experiência literária (UFPR, 2020), indica 5 poemas para lembrar a autora.


XIV

Quisera tanto que durasse

qualquer desejo em qualquer dia

que mesmo sendo em demasia

eu deles nunca me fartasse;

assim enquanto não houvesse

nada mais que vos sugerisse

então que a vida ressurgisse

e só desejos refizesse;

porque deixei vossa verdade

ó coisas já feitas de espera

quando sempre tudo soubera

tão cheio de realidade;

pois bem sei que ando consumida

mas por desejos que são vida.

(De XX Sonetos, 1959)


CARTÃO POSTAL

Repente de tarde. Plana. Ceifada.

Âncoras amortecem o peso e se liquefazem.

Apagam-se ruivos outeiros.


Dois namorados olham o mar.


Um pássaro de insólito voo

roçou-lhes o ombro.

— Seremos assim potentes?

E subitamente puseram-se

a ferir-se a ferir-se

a ferir-se

(De Coração incólume, 1968)


MÁGICO DESAFIO

Um filho não deveria

ser feito

para cumprir mandamentos, para

povoar

a solidária solidão de pares amorosos, improvisados e mesmo contrafeitos —

o filho, quando concebido

seria para

provar apenas isto: 

a matéria ou

mistério

ou vida

desafiando o pensamento.

(De Pose, 1968)


AQUAVIA

Como a fonte que jorra, ambivalente,

marejados de sono, navegamos —

que esse rio de amor e de abandono

seja leito comum para quem morre.

Impelidos à margem da corrente

sacudimos a tarja temporária -

e a alma se evapora: tarlatana

sobre a nossa nudez contraditória.

Na umidade do riso, no desejo

impreciso e profuso, pelo pranto

que no calor das órbitas poreja,

Ah, transidos de frio, patinamos

entre quiosques, domos e coretos

sem nada surpreender ou consumar.

(De Romanceiro de Dona Beja, 1979)


(SEM TÍTULO)

Manhã sem rusga

pequeno depósito de agrura na poça

exorbitei de alegria

a abóbada celeste não dá vazão

silos de silêncio

ó ser astral

o capim é minha grande reserva interior

a esperança

desleixo

(De Batendo pasto, 2020)

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