Fernando Pessoa e a grande explosão da vanguarda portuguesa
O autor do ‘Livro do Desassossego’ inspira exposição no Centro Reina Sofía, na Espanha
Por pouco que tenhamos frequentado o Livro do Desassossego, cuja autoria Pessoa atribuiu ao ajudante de guarda-livros Bernardo Soares, já saberemos que seu afastamento da vida e da ação comum ele o subtrai às coordenadas precisamente históricas, e que seu incurável exílio da vida espontânea o fez ver refletido no outro e nos outros seu doloroso cativeiro reflexivo. É isso — “o homem completo é aquele que se ignora” — o que afasta sua personalidade criadora do otimismo e da euforia, sejam eles construtivos ou destrutivos, da época das vanguardas, que foi a sua. Caberia ainda reconhecer nele os traços e platônicos e paulinos, ou talvez agostinianos — mas em todo caso existenciais —, de quem sofre por não poder ser um transeunte como outros, com a fé não premeditada que se supõe neles, voltado como eles à ação prática e sem distância consigo mesmo.
De fato, é muito difícil extrair de Pessoa o que em outros chamaríamos “sua estética” se entendermos por isso apenas uma economia própria do significado das formas simbólicas; primeiro porque sua personalidade não consiste em qualquer identidade unitária, mas na subjetividade fragmentada que Ángel Crespo (seu introdutor espanhol, ao lado de José Antonio Llardent) denominou uma “vida plural”. E não apenas pelo desdobramento de seus heterônimos, mas pela angustiada pungência que teria mais afinidade, talvez, com a reflexão ao mesmo tempo política e religiosa do Dostoievski de Os Demônios, por exemplo.
Seu grande livro — entre a meia dúzia de grandes livros do século XX —, escrito entre 1912 e sua morte em 1935 (o arco temporal da exposição), começa assim: “Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido — sem saber porquê”. E é esse “sem porquê”, essa alegria pré-reflexiva, que lhe foi proibido e pareceu-lhe tão perdido de origem que qualquer acepção simplesmente desumanizada, ou seja, ativista, malabar e festiva, como a que costumamos atribuir às vanguardas, é muito alheia a ele.
Do que fala — pelo contrário — Soares-Pessoa (seu heterônimo menos heterônimo) é da descontinuidade moderna entre pensamento e ação, depois da qual não apenas Deus — e com Ele, o povo, como diria Dostoievski — foi suplantado pela humanidade, mas que a espontaneidade e a alegria criadoras foram esquecidas como um sonho anterior ao próprio tempo, como Leopardi e Nietzsche já tinham acusado a partir de certa tradição romântica. O poeta sente viver em um tempo que não é o de seu personagem exterior, mas outro a que resolve chamar de “Decadência”, cego, é claro, para qualquer eufórico horizonte como o da vanguarda: “A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida”.
O isolamento reflexivo é o que determina a relação angustiante do escritor português com o exterior e o converte em fantasmagórico
O que não significa que o “exterior” artístico de seus dias lhe era desconhecido. Como Ramón Gómez de la Serna, batizou alguns ismos (paulismo, sensacionismo, interseccionismo...) mais ou menos à portuguesa. Mas é esse isolamento reflexivo que determina sua relação angustiante com o exterior e o converte em fantasmagórico. Daí o primeiro mérito da reconstrução de um contexto em relação ao qual, não obstante, Pessoa sentiu um desejo infinito de distanciamento e esquecimento. O segundo seria o caráter avassalador da exposição (160 obras, centenas de documentos, revistas, cartas e fotos procedentes da Fundação Gulbenkian e de outros centros como o Pompidou), culminando com a já bem estabelecida presença espanhola de Pessoa e contribuindo para consolidar a presença da particular vanguarda lusa.
Em 1980, pouco antes da publicação do Livro em Portugal, a revista Poesía dedicou um número monográfico a Pessoa; e em 1994 fez o mesmo com aquele que podemos considerar integralmente o Homo vanguardista lusitanensis, José de Almada Negreiros, cuja fecunda estadia em Madri, entre 1927 e 1932, foi recentemente evocada em mesas e publicações espanholas. Foi exatamente Pessoa o primeiro a mencionar a multifacetada condição do pintor, escritor, cenógrafo etecetera Almada na revista A Águia, quando fez sua primeira exposição em 1913, algo em que logo insistiria Gómez de la Serna, que o homenageou em Pombo. Embora na verdade as direções de Pessoa e Almada fossem opostas: o primeiro não é, como o segundo, uma única pessoa na qual se realiza o modelo do novo artista total, mas uma multidão cuja redução à unidade é impossível, exceto em uma dramaturgia.
A grande explosão da vanguarda portuguesa aconteceu ao redor de 1915, por meio das publicações pessoanas Orpheu e Portugal Futurista (Pessoa compartilhou seu único número com Álvaro de Campos — talvez o heterônimo mais vanguardista —, Almada, Mário de Sá-Carneiro, mas também com Apollinaire e Blaise Cendrars). Justamente Cendrars dedicou seus versos a Sonia Delaunay, que ao lado do marido passou uma temporada em Valença do Minho, perto do Porto, colocando Almada em contato com os balés de Diaghilev.
Vestido com uma espécie de macacão, Almada deu uma célebre conferência em 1917 no Teatro da República (“violentamente chutado em sua entrada no palco”) e fez parte do Comitê Futurista de Lisboa com Guillermo Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso, que talvez fosse o pintor mais pintor entre aqueles portugueses, forjado no modernismo e no cubismo. Quanto à presença espanhola entre eles (ou vice-versa: Amadeo tinha frequentado Juan Gris em Paris), Almada e Ramón continuavam a relação — morna — que Pessoa cultivara com os ultraístas Adriano del Valle, Rogelio Buendía e Isaac del Vando-Villar, e a que antes manifestaram Valera junto ao historiador Oliveira Martins e principalmente Unamuno na estreita companhia de Teixeira de Pascoaes ou Eugénio de Castro. Depois do retorno de Almada e da morte de Sá-Carneiro, Amadeo e Santa Rita, o próximo grande momento da vanguarda portuguesa seria testemunhado, desde o fim dos anos vinte, pela revista Presença, que publicou fragmentos daquele Livro póstumo e futuro, do qual nos chega o devastado anseio de alguém perdido em um destempo irremediável.
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