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Marina Lima: “O tempo que me foi dado foi o agora”

Lançando EP de inéditas e ‘songbook’ com partituras de toda sua discografia, cantora comenta interesses musicais que vão de Nelson Cavaquinho a Dua Lipa, cobra postura diferente da imprensa nas próximas eleições presidenciais e expõe fascínio com redefinição dos padrões de gêneros

A cantora e compositora Marina Lima.
A cantora e compositora Marina Lima.Candé Salles

Marina Lima não assiste a séries. “Prefiro filmes. Sou exigente, chata, virginiana. Fazem dois episódios bons, depois percebo que estão me alugando. Não gosto de ter a sensação de perder tempo. O que tenho de mais precioso é o meu tempo”, explica a cantora e compositora em conversa por Zoom, de casa, cercada de seus instrumentos, microfones e computadores. Aos 65 anos, lançando um EP de quatro músicas inéditas e um songbook com 175 partituras referentes a toda sua discografia, Marina quer usar o tempo a seu favor.

Não há aí, porém, nenhuma ansiedade, possível fruto da proximidade da velhice. Até porque Marina vê muita estrada pela frente. “Estou com 65, imagino que possa viver até os 100. Talvez consiga, como tenho uma vida muito saudável, não ficar muito senil até os 90. Dos 90 aos 100 eu não garanto nada”, fala, bem humorada. “Mas até os 90 eu quero estar acompanhando nas minhas músicas os assuntos do meu tempo, os assuntos que me afetam”. Ela faz uma pausa antes de concluir com uma explicação que, em sua simplicidade, revela a naturalidade de seu pensamento: “Porque eu gosto”. Seu repertório recente, da novíssima Nóis (com referências a covid-19, Trump e Bolsonaro) a Novas famílias (que batizou seu disco de 2018), atestam esse desejo de testemunhar o calor do contemporâneo.

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A redefinição dos padrões de gênero, por exemplo, está entre as questões que mais atraem a atenção da cantora hoje. “Estou fascinada. Tenho visto pessoas resolvidas, procurando defender e explicar isso tudo, de maneira bonita. Na verdade, estou achando que está se abrindo todo um campo de possibilidades novas pra mim [risos], de conhecer uma outra sexualidade minha. Não que eu vá querer ser trans, mas vai que algum dia eu queira namorar uma pessoa trans? As pessoas que eu vejo são tão interessantes que já me imagino capaz de algum dia, não agora porque estou casada [com a advogada Lídice Xavier] e ótima, mas eu poderia um dia me apaixonar por uma pessoa trans, ou transar com uma pessoa trans.”

Marina fala “meu tempo” sempre se referindo ao hoje. “Eu gosto de poder viver o meu tempo, e o tempo que me foi dado foi o agora. Vivi os 10, os 20, os 30, os 40, os 50... Passei pela ditadura, me fodi na meia idade quando tive que fazer escolhas difíceis. Agora estamos vivendo a pandemia. Mas não quero por isso pensar: ‘Ai, meu Deus, que tempo horrível, queria estar noutro tempo’. Não. Estou vivendo este tempo, quero saber pra onde a gente vai, quais são as possibilidades. Esse é o sentido e a graça da minha vida.”

Nos últimos meses, Marina se lançou no exercício de olhar para o passado, ao se debruçar sobre o songbook Música e letra (download gratuito em marinalima.com.br), revisando as partituras e cifras transcritas por Giovanni Bizzotto, músico e parceiro que a acompanha desde a década de 1990. Normalmente, porém, não costuma dar muita atenção ao que já foi, ao que já fez.”Não gosto de olhar para trás. É um traço importante da minha personalidade. Eu me dei inteira para o que fiz, aquilo está terminado. Agora tenho que fazer outras coisas. Mas o ‘Música e letra’ era importante. Quem quiser me conhecer, meu trabalho, minha pretensão, minha decepção, como quiser, a chave está toda ali nos meus discos. Queria deixar isso registrado em livro, esses mais de 40 anos de carreira”, diz, referindo-se ao período coberto pelo songbook, que vai de seu disco de estreia, Simples como fogo (1979) até o novo Motim.

Marina Lima na capa de 'Motim'
Marina Lima na capa de 'Motim'Candé Salles

Pelos apogeus, canção que abre o EP Motim, é exemplar dessa natureza virgem de Marina (sempre à procura de “outros olhos e armadilhas”, como ela já cantou). A letra traça uma autobiografia sintética (o nascimento no Rio, a temporada nos Estados Unidos, onde morou entre os 5 e os 12 anos, os “anos de loucura e paixão”, as “derrapadas lá na meia idade”) e conclui afirmando convicta o valor do presente, da maturidade, dos 65 anos — “este inverno claro como verão”, ela canta (“O inverno é um apogeu da existência, pra mim claro como o verão. A vida nos dá em cada momento diferentes apogeus, essa canção é sobre isso”, explica).

Na gravação, Marina está acompanhada apenas de seu violão de cordas de aço, em acordes e atmosfera bossanovistas, numa canção que não é bossa nova. “Ouvi demais Baden Powell, bebi demais dessa fonte. Ganhei um violão aos 5 anos, morando nos Estados Unidos. E, em 1965, a bossa nova, essa música do meu país, estoura lá. Meus vizinhos faziam aula pra aprender a dançar bossa nova (risos). Fiquei muito ligada em aprender aqueles acordes”, lembra a compositora. Em vez do timbre suave das cordas de nylon característico da bossa, porém, ela prefere a acidez cortante das cordas de aço. “Aprendi a tocar nos Estados Unidos, lá se toca muito mais cordas de aço, por isso as uso desde quando comecei. Só toco aço, um timbre mais agressivo. Nessa música quis soar meio (guitarrista americano) Joe Pass, ele sozinho com Ella Fitzgerald. E no Brasil, nas cordas de aço, tem Nelson Cavaquinho. Essa é a minha praia. Aço”.

Kilimanjaro (parceria de Marina com Alex Fonseca e Alvin L), outra canção do EP, traz na sua dinâmica de composição mais uma estreia que Marina se permitiu: é a primeira vez que ela compõe num processo colaborativo, como numa banda. “Sou sozinha, normalmente faço tudo da parte musical. Ninguém dá muita opinião em acorde, ritmo. Quando chego no estúdio e passo pra banda, o âmago do negócio já está pronto. Desta vez, eu estava fazendo uma música com Alvin, o Alex mandou outra música. Mostrei pro Alvin e ele juntou as duas em ‘Kilimanjaro’, depois o Alex conseguiu amarrar... Imagino que fosse assim que Renato Russo compunha com a Legião, ou Thom Yorke com o Radiohead. Eu nunca tinha feito isso!”

A canção-título do EP, Motim (de Marina, Alvin e Giovanni Bizzotto), tem na letra a ideia de suspensão sugerida pela música —de alguém que deixa uma paixão em modo de espera (“Nem doendo, nem zoando/ Mas tramando o meu motim”). “Alvin (que fez a letra) é irônico como eu, a gente se entende muito”, conta Marina, que deu a música para que o parceiro fizesse os versos. Ela lembra de só ter feito uma vez o processo contrário, ou seja, a música a partir da letra (Alma caiada, sua primeira parceria com seu irmão Antonio Cicero, composta a partir de um poema dele que ela encontrou numa gaveta). “A letra vem sempre depois pra mim porque na canção a música é o mais importante. Nietzsche expressa isso lindamente ao dizer que a música é o mar, as palavras são mera embarcação.”

Parece sugestivo batizar um EP de Motim num momento histórico em que se levantam desejos de insurreição sintetizado em hashtags que passam por #metoo, #blacklivesmatter e #forabolsonaro —mais ainda quando ouvimos Nóis, faixa que encerra o disco. Nela, Marina celebra a queda de Trump (“O homenzinho do norte caiu”) e prevê a derrocada de Bolsonaro (“E logo, já já, essezinho daqui vai ruir”). “Espero que em 2022 a gente tenha um quadro muito diferente”, diz a cantora, que declara que votaria em Ciro Gomes ou Marina Silva se houver uma chance real de vitória deles. “Mas diante do Bolsonaro eu não posso correr nenhum risco. Lula não é minha primeira opção, mas tenho admiração por ele. Votaria nele sem dúvida. E acredito que a imprensa que permitiu que Bolsonaro chegasse ao poder deveria melhorar para as próximas eleições ou será vista como uma minhoca. Se Lula for a saída, a imprensa tem que mostrar pro povo a verdade.”

Nóis tem a participação de Mano Brown, mas não com a verve de rapper de rimas duras que acostumamos a ouvir nos Racionais MC’s, e sim com delicados vocalises (“Parece um Milton Nascimento”, comparou Marina quando o ouviu improvisar sobre a base etérea e dançante da faixa). É curioso ouvir o rapper fazendo arabescos em torno da palavra “sonhador” (no verso “O povo mais sonhador que há”), quando ele tem sido há décadas um cronista da realidade crua, seja em raps como “Negro drama” ou em falas como a do comício de Fernando Haddad realizado no Rio às vésperas do segundo turno das eleições de 2018. No evento, que procurava injetar otimismo na militância para impulsionar uma possível “virada”, Brown baixou o ânimo geral num discurso que afirmava que o PT estava afastado de sua base: “Se não está conseguindo falar a língua do povo vai perder mesmo”.

“Foi maravilhoso aquilo, ele mandou a real”, lembra Marina. “Mas você viu como ele canta “sonhadoooooor” (imita)? Ele não quer mentir, ele não quer falar que o PT poderia ganhar quando já tinha perdido. Mas ele é um sonhador, os homens são. É um romântico. E me contou que todos os amigos dele, homens, só ficam mal mesmo por causa de mulher (risos).

Motim, portanto, tem essa temperatura 2020/2021 que funciona como um espelho para a Marina de hoje, do “inverno claro como verão”. Já o songbook Música e letra tem o caráter de um álbum de fotografias, no qual Marina se reconhece, se estranha e se entende melhor: “Fui tendo mais simpatia por mim. Entendi minha trajetória, encontrei grandes músicas, me emocionei ao lembrar de onde elas vinham. E também vi umas duas ou três que não sei onde eu estava com a cabeça! No disco Registros à meia voz, por exemplo, tem um instrumental enorme de Mesmo que seja eu. Pra quê, se a grande graça da música era eu cantando aquilo, ‘um homem pra chamar de seu mesmo que seja eu’?”

Marina Lima
Candé Salles

No geral, porém, Marina tem um sentimento inequívoco de satisfação com sua trajetória. “Quando eu comecei a não gostar dos meus caminhos, eu perdi a voz”, lembra, referindo-se à depressão que atravessou na década de 1990, que teve efeito sobre sua voz assim como um procedimento médico que feriu suas cordas vocais. “Ou seja, dei um jeito e me ausentei até poder voltar com o discurso que eu queria ter naquele momento”.

Artista que combinou ao longo de sua trajetória popularidade e sofisticação como pouquíssimos da música brasileira, Marina acredita que a música de massa “não precisa ser necessariamente boba e mal feita”. “Ela pode ser esperta, trazer um acorde que ninguém espera, uma rima surpreendente, mesmo sendo simples”, defende. Da cena indie pop brasileira atual, para a qual ela é uma referência, a cantora destaca Alice Caymmi (“Se eu tivesse 20 poucos anos, escolheria um caminho parecido com o dela”) e Letrux (“Minha vida é parecida com a dela, todos os seus temas são muito contemporâneos”). No cenário internacional, crava: “A Dua Lipa eu acho foda”. Uma artista cujo último álbum —num acaso que seria desperdício simbólico ignorar— se chama Future nostalgia (Nostalgia do futuro, em tradução livre). Como anuncia Marina há décadas: “Vem chegando o verão” — ou o inverno, claro como verão.

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