Com ‘OxeAxeExu’, BaianaSystem refaz os caminhos afro-latinos através da música
Grupo baiano, cuja principal força motriz é o contato com o público nos shows, se aventura com disco produzido “em tempo real” que parte da Bahia ao resto da América Latina e Tanzânia
No último dia do Carnaval de 2020, em Salvador, Russo Passapusso, vocalista do BaianaSystem, teve um “colapso”. De cima do Navio Pirata, o trio elétrico da banda, ele olhava para o mar de gente que seguia seu som e, abrumado por aquela energia, se perguntava: “Para onde vamos, capitão?”. Era quase uma epifania do que estava por vir. Depois da explosão na folia soteropolitana, veio o isolamento e a espera. E é em uma tentativa de responder a essa pergunta que a banda formada por Russo, pelo guitarrista Beto Barreto e pelo baixista Seko Bass lança seu novo álbum, OxeAxéExu. Dividido em três atos —o primeiro, Navio pirata, foi lançado em 12 de fevereiro—, o disco propõe uma viagem musical pela América Latina e a África Oriental. “Queremos transpor mares e traçar esses caminhos afro-latinos”, resume Beto ao EL PAÍS.
Uma mensagem numa garrafa que cruza o Atlântico. Essa é uma das definições possíveis para esse trabalho, lançado com a benção de Reza forte, parceria com o rapper BNegão, primeira das sete faixas do primeiro ato. Essa música introduz os elementos de fé e sincretismo religioso que perpassam todo o disco . “Mergulhamos nesse processo de música através de cura. Trazemos todos os elementos de alegria, de amor, de dor, de força, mas cura dentro disso é o que mais precisamos agora”, explica Russo, que mistura folha de arruda, pé de coelho e sal grosso no refrão.
O segundo ato, Recital instrumental chegou nesta sexta-feira às plataformas de streaming —o terceiro, América do Sol, sai dia 26 de março— com o navio já em alto mar, como transição que marca o meio dessa viagem. As quatro faixas desse ato mergulham no universo sensorial da música e suas muitas camadas, priorizando o instrumental e colocando a palavra cantada em menor velocidade, com se as próprias cordas vocais fossem um instrumento a mais, junto com cordas, metais, madeiras, percussão, synths e beats.
Mesmo com tanta mistura, ouvir OxeAxeExu é, de fato, como escutar uma oração. Em Raminho, a prece de Dona Ritinha, rezadeira do sertão da Paraíba protagonista de O ramo, de Breno César, abençoa os portos onde esse navio vai aportar. O primeiro deles é a Tanzânia, berço da singeli music, que, mais que um estilo musical, é um fenômeno cultural que existe há cerca de 15 anos. Chegando a bater 300BPM, essa música é dançada como chura, um estilo em que as pessoas mexem as nádegas no ritmo acelerado e enérgico da batida, apoiadas no chão ou em outra pessoa. São um som e uma dança que dialogam perfeitamente com o axé baiano ou com batidão do funk de 150BPM.
A característica guitarra de Beto Barreto encontra a singeli em Nauliza, faixa que nasceu da colaboração com MC Makaveli e do DJ e produtor Jay Mita, que a banda conheceu na internet junto ao agitador cultural Abbas Jazza, todos de Dar es Salaam, a maior cidade da Tanzânia. Cantada com trechos em suaíli, dialeto local, a palavra que dá nome à canção tem tudo a ver com os processos pelos quais o BaianaSystem está passando: “para onde vamos”.
Russo Passapusso conta que, em suas pesquisas musicais, não queria um elo com o continente africano que posse intermediado por um filtro colonizador, como as referências culturais dos Estados Unidos. “Estava vendo acontecer muito o encontro com nossas referências ancestrais através da linguagem de colonizadores culturais. Via isso em minhas próprias composições, por causa dessa colônia cultural que a gente é, com nossos hot dogs, com as roupas que a gente quer vestir, com quem a gente quer ser...”, explica. Pegou no sono uma noite em frente ao computador e, quando acordou, viu na tela um grupo de pessoas dançando ao ritmo frenético da singeli do DJ Jay Mita. Como não encontrou suas músicas em nenhuma plataforma de streaming, mandou uma mensagem e começaram a trocar ideias e colaborar. Beto Barreto foi o tradutor e a ponte logística da produção. “Muitas vezes ele ia gravar a voz para uma parte da música, mas ligava e dizia ‘olha, minha cidade está em lockdown, só poderei ir ao estúdio daqui a 10 dias’”, lembra o guitarrista sobre os desafios impostos pela pandemia de covid-19.
Em meio à produção, os músicos contam que puderam refletir sobre as relações culturais entre Bahia e Tanzânia. “Os pretos daqui são os pretos de lá, as pessoas daqui dançam como as de lá. Não à toa, [o geógrafo] Milton Santos escolheu a Tanzânia como primeiro país para dar aula quando foi exilado durante a ditadura militar brasileira”, lembra Russo.
Entre o real e o virtual
No final de outubro de 2020, o BaianaSystem já tinha quase todas as músicas de Navio pirata pré-produzidas e sonhavam com um Carnaval em fevereiro, momento em que o público serve de termômetro para testar as novas composições da banda. “A gente sempre tocava uma música nova no trio e observava a reação da galera, para depois irmos para o estúdio”, conta Beto. Quando ficou claro que não teriam essa possibilidade, os músicos perderam o “tato”, nas palavras de Russo. “No show ou em cima do trio, você vê as pessoas comungando daquela energia e sabe. Agora, com tudo no mundo digital, eu não sei se as pessoas estão entendendo o que a gente quer jogar no mundo. Quando você olha no olho de alguém do público, você entende o sentimento daquelas 5.000 ou 10.000 pessoas que estão ali”, explica.
É justamente na tentativa de se aproximar mais do público que os músicos estão produzindo OxeAxeExu quase em tempo real. Quando conversou com o EL PAÍS, na quarta-feira de cinzas, 17 de fevereiro, Russo ainda tinha que terminar de gravar a voz do segundo ato, Recital Instrumental, e começar a gravar o ato final do disco, América do Sol. “Estamos querendo entender que tempos são esses que vivemos, tão imediatistas e, agora, perpassados por uma quarentena sem previsão de acabar. O virtual te empurra para o imediato, para as comunicações em ultra velocidade, enquanto o real te obriga a esperar”, comenta o vocalista.
Uma das únicas bandas de relevância nacional que ainda não se rendeu aos shows em formato de live na quarentena, BaianaSystem resiste ao clamor dos fãs nesse sentido. Ao menos por enquanto. Os músicos dizem que não se imaginam tocando sozinhos, olhando para uma câmera, em um modelo que consideram pasteurizado. “Para nós, o ideal seria pegar 50 ou 100 pessoas, testá-las e colocá-las em um lugar seguro onde tocássemos para elas e essa sensação real do ao vivo com um público ser transmitida na internet”, diz Russo. Enquanto isso não acontece, o navio pirata segue seu rumo. Com folha de arruda, pé de coelho e sal grosso.
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