Um “aperto no peito” e a adrenalina do Carnaval contida na escola Vai-Vai, a mais antiga de São Paulo
A mais antiga escola de samba de São Paulo celebraria neste ano a volta ao grupo especial. Agremiação perdeu 30 integrantes para a covid-19 e viu comunidade ter de se virar para sobreviver
Na manhã da sexta-feira de Carnaval, só se ouvia, lá longe, um martelo batendo num ferro em algum dos barracões da Liga das Escolas de Samba de São Paulo, na zona norte da cidade. Um ano antes, o lugar estaria tomado de pessoas correndo de um lado para o outro, em uma cacofonia de sons que marcariam os últimos ajustes antes das noites de desfile. A pandemia de covid-19 privou o Brasil de sua festa mais tradicional e mudou a vida de quem faz Carnaval o ano todo, não só em fevereiro. No caso do Grêmio Recreativo Cultural Vai-Vai, o aperto no peito é maior: a escola de samba mais antiga de São Paulo voltaria ao grupo especial em 2021, depois de levar o título no ano passado com um enredo em homenagem aos seus 90 anos de história.
“É o primeiro ano em que estou sem fazer nada no Carnaval. Aqui dentro está apertado.” Fernando Penteado, de 74 anos, diretor cultural do Vai-Vai, faz um gesto com a mão fechada sobre o peito. Neto de Frederico Penteado, um dos cinco fundadores da escola (que nasceu em 1930), Fernando começou a desfilar aos cinco anos com as cores preto e branco do bairro do Bixiga e hoje é uma espécie de entidade da escola.
No chão de um dos barracões do Vai-Vai, fantasias e adereços de anos anteriores formavam uma pequena montanha. Em uma parede, dezenas de rolos de fita de muitas cores e brilhos estavam organizadas em estante. Pedaços de tecido e moldes de gesso repousavam sobre duas grandes mesas de trabalho colocadas em cantos opostos do local fechado, onde apenas cinco pessoas trabalhavam nas alegorias. “Hoje era para ter mais de 100 pessoas aqui”, lamenta Fernando. À angústia da comunidade, soma-se a crise econômica provocada pelo coronavírus, que fez com que muitos membros da escola perdessem sua principal fonte de renda.
“Muitos dos nossos estão vendendo lanche ou fazendo artesanato para sobreviver. Tinha gente desesperada querendo fazer o desfile porque suas casas são ateliês de Carnaval, elas vivem disso e queriam trabalhar. Mas eu dizia que, se elas trabalhassem, o dinheiro seria só para comprar o caixão”, conta Fernando. Apesar de lamentar o primeiro Carnaval em mais de seis décadas sem pisar no sambódromo, ele não considera seguro ou apropriado fazer festa quando muitas pessoas estão adoecendo ou morrendo de covid-19. A escola, conta Fernando, perdeu 30 pessoas para a doença, entre diretores, baianas, velha guarda e demais componentes. “De agosto a novembro, morriam dois ou três por mês. É impossível brincar em fevereiro diante de uma situação dessas.”
O diretor cultural também lembra das outras mazelas causadas por essa mudança na rotina da comunidade: “Tem gente que está tomando remédio, entrando em depressão, tristeza mesmo. Este ano vamos só fazer pipoca e sentar no sofá para assistir os desfiles do ano passado na televisão” (a TV Globo vai transmitir uma seleção os maiores desfiles da história de São Paulo e do Rio, um convite à nostalgia, mas também à festa em casa).
Em uma das grandes meses do barracão senta Luciana Mazola, de 42 anos, aderecista e decoradora responsável pelas alegorias do Vai-Vai, que só reassumiu seu posto de trabalho nos últimos meses e trabalha com um equipe pequena para o próximo Carnaval. Ela, que há 28 anos largou o emprego de vendedora de automóveis para viver de Carnaval, teve que deixar a quadra para costurar máscaras em uma ONG e depois fazer telemarketing em uma empresa de internet e, assim, conseguir pagar as contas. “Há 20 anos na escola minha função é organizar e garantir que a criação do carnavalesco vai sair do papel. Quando perdi isso, consegui pagar os boletos, mas foi como se tivessem tirado um órgão do meu corpo. Perdi a adrenalina que tinha na minha rotina”, diz ela.
Luciana trabalha com as mesmas pessoas na sua equipe há, no mínimo, 10 anos. Quando a escola fechou os barracões e a quadra, ela passou os dados de todos para a direção do Vai-Vai, que organizou cestas básicas, kits de higiene e fraldas de criança paras serem entregues a esses trabalhadores. “Quem era aderecista, virou faxineira. Quem era forrador, foi trabalhar em hospital, todo mundo tentou se manter”, conta. A solidariedade é um traço natural da escola de samba, onde muitos dos membros convivem mais entre si do que com suas próprias famílias. “Você acaba passando mais tempo aqui do que em casa. A cozinheira vira sua mãe, o diretor de barracão é como seu pai”, acrescenta.
Sankofa
A escola de samba Vai-Vai é um reflexo do bairro paulistano onde, historicamente, misturaram-se negros, imigrantes italianos e nordestinos. O primeiro desfile, em 1930, foi realizado com ajuda financeira dos barões do café (em cujas casas trabalhavam muitas das mulheres do Bixiga) e com a criatividade da comunidade negra. O enredo de 2021 —agora guardado para 2022— é um convite a resgatar ainda mais a força cultural dessa ancestralidade africana. Inspirados no império do povo Axante, com sua força e sua mitologia povoada de quimeras, a escola traz o sankofa, um pássaro símbolo desse reino e cujo significado lembra que “nunca é tarde para voltar atrás e buscar o que ficou perdido”.
“O Vai-Vai é um quilombo encravado no meio da cidade, um núcleo de resistência e de irmandade com outros povos, que soma culturas, assim como faziam os reinos africanos. Vamos pegar aquilo que faz nossa soberania, usando esse espelho do império Axante”, explica Gabriel Melo, de 32 anos, diretor de Carnaval da escola pela qual desfila desde a infância.
Fernando Penteado comenta que o enredo remete ao ensinamento africano de que uma pessoa só se conhece realmente se conhecer seu próprio passado. “A história do povo negro passou a ser mais contada graças às escolas de samba, que colocaram as personalidades negras em seus enredos. Nos livros escolares, é difícil achar a história de Zumbi dos Palmares ou Chica da Silva, por exemplo”, afirma.
O Vai-Vai se prepara para quando o Carnaval chegar, seja quando for, e pretende celebrar em grande estilo sua volta ao grupo especial. A escola está em fase de construção dos pilotos das fantasias, com o objetivo de fazer uma festa de “luxo africano, só que criado materiais que as pessoas não esperam ver num desfile carnavalesco”, conforme diz Gabriel. As plumas naturais, por exemplo, muito provavelmente serão substituídas por penas de tecido.
A pandemia afetou também a importação de alguns materiais —muitos provenientes da China— e elevou o preço de outros. “O próximo Carnaval será uma disputa de criatividade, porque não tem matéria-prima no mercado, e o que tem está muito caro”, comenta Luciana. Não há dúvida, no entanto, de que a escola vai levar, mais uma vez, seu melhor para o sambódromo. “Vamos mostrar que o Vai-Vai volta ao lugar de onde nunca deveria ter saído”, garante ela.
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