Regina Casé: “É preciso acabar com o preconceito de que mulheres pobres são todas iguais”
Ela não queria ser mãe nem artista, mas contrariou-se em ambas coisas. A atriz, dramaturga, diretora e apresentadora fala ao EL PAÍS sobre sua carreira e, especialmente, sobre Lurdes, de ‘Amor de mãe’, que volta ao ar em 1 de março
Regina Casé (Rio de Janeiro, 1954) nunca quis ser mãe. Como ela mesma diz, “era muito afrancesada, lia Simone du Beauvoir” e achava que, se engravidasse, nunca mais trabalharia ou viajaria. “E isso que eu nem pensava na diferença de gênero, se era homem ou mulher, que mulher tem que ter filho e tal. Eu digo que, naquela época, eu já era genderless, hoje eu sou ageless”, gargalha, aos 66 anos, a avó de Brás (3 anos) e mãe de Benedita (31) e Roque (7), após ter vivido o que considera “uma maternidade tardia”. Desde novembro de 2019, ela também tornou-se referência afetiva para milhões de brasileiros que se apegaram à dona Lurdes, uma das protagonistas da novela Amor de mãe, vivida pela atriz, diretora, dramaturga e apresentadora.
Como muitas mulheres brasileiras, Lurdes, uma empregada doméstica, educou sozinha quatro filhos e não hesitou em deixar o interior do Rio Grande do Norte com as crianças rumo ao Rio de Janeiro para procurar Domênico, um outro rebento que foi vendido pelo seu marido quando era criança. Essa procura desenfreada atravessa quase todo o enredo na novela escrita por Manuela Dias, mas a personagem interpretada por Casé vai além do drama e brinda o público com momentos de humor em cenas simples do cotidiano.
Como tantas outras, ela é a mãe que adora tirar foto com plantinhas, a que recorre à ajuda dos filhos para usar o celular, a que reclama quando o telefone fixo toca e, mesmo com a casa cheia, é sempre ela a atender. Casé diz que esse apego do público deve-se ao fato de que Lurdes não é só uma personagem popular, mas alguém que as pessoas já conhecem e identificam no lugar de suas próprias mães, avós, tias ou vizinhas. “Elas têm muita intimidade com essa mulher, a respeitam, se emocionam com ela, mas zoam também. O Carnaval [de 2020] foi a grande prova disso, pipocou Lurdes do Oiapoque ao Chuí”, lembra, com o largo sorriso que manteve durante toda a entrevista.
Mas aí veio a pandemia de covid-19 e a busca por Domênico —agora que sua mãe estava tão perto de encontrá-lo— teve que ser interrompida. As gravações de Amor de mãe só foram retomadas em agosto e a novela voltará ao ar no dia 1 de março.
Na quarentena imposta pelo coronavírus, Casé ficou com a família e marcou presença nas redes sociais, onde postou, além de cenas da sua rotina, vídeos de conscientização sobre a surdez (sua filha Benedita foi diagnosticada como surda aos quatro anos) e temas como racismo, ao lado do filho Roque. “Eu nunca separei meu papel de mãe do meu papel de comunicadora, do meu papel de mulher. Eu nunca entendi esse negócio de falar: ‘eu como cidadã, eu como artista, eu como pessoa’. Para mim, é tudo junto e misturado”, diz ela, que admite não gostar de postar hashtags, entrar em movimentos ou partidos nem se juntar a grupos nesse sentido. Seu trabalho social vai por outro lado, mas é inerente à sua carreira.
Conhecida por apresentar programas como Esquenta! e Brasil legal (entre muitos outros) e filmes como Eu, tu, eles (2000) ou Que horas ela volta? (2015), Casé passou 18 anos sem fazer novelas. Lurdes surgiu para firmar o tripé que marcou seu retorno à atuação: em 2019, ela escreveu e protagonizou o monólogo Sarau da onça, que estreou em Salvador, onde tem casa; pouco depois, iniciou com Sandra Kogut o projeto de Três verões, longa-metragem lançado este ano que conta, com ironia, o Brasil da Lava Jato e suas diferenças de classe. E depois veio o convite para a novela. “A maior motivação para viver a Lurdes foi essa vontade de voltar à dramaturgia e trabalhar intensamente como atriz. Uma protagonista com a força e com a beleza dela sempre é um marco. E eu agradeço muito à Manuela (Dias, autora) esse presentão”, explica.
A primeira conversa com o EL PAÍS foi em março de 2020, justamente na pré-estreia de Três verões, filme em que Casé interpreta Madalena (Madá), a governanta de uma mansão de praia que fica encarregada da propriedade e dos demais funcionários quando o patrão é preso em uma operação anticorrupção. “A Madá foi minha chance de falar sem sotaque por uma vez na vida”, gargalha. “Mas também porque tem nuances e características que me ajudam a quebrar esse preconceito de que todas as mulheres ricas são diferentes entre si e que todas as mulheres pobres são iguais. Precisamos acabar com isso”.
Madalena é a terceira trabalhadora doméstica interpretada pela atriz: além de Lurdes, ela interpretou Val, em Que horas ela volta?. Mas Casé diz que tem muita vontade de viver uma mulher rica e, se possível, que seja uma “vilã irascível”. Ela diz, no entanto, que é “quase um prêmio” poder interpretar mulheres pobres. “A vida me deu essa oportunidade de ser uma atriz que, até fisicamente, representa esse perfil de mulher e é um dos meus maiores orgulhos. Graças à educação que eu tive, ao meu trabalho, que me levou a essas pessoas, pelo fato de eu nunca ter feito lifting [gargalha], eu poderia ir fazendo uma mulher pobre atrás da outra e mostrando como cada uma é diferente da outra”, afirma.
Nos 40 anos que passou viajando o país como apresentadora, Casé conta que foi construindo, pouco a pouco, um tesouro com os gestos, expressões, trejeitos, emoções e sentimentos que conheceu intimamente com cada pessoa que lhe abria a porta de casa. “Por exemplo, antes de que a novela saísse do ar, apareceu a casa da mãe da Lurdes, no sertão do Rio Grande do Norte. Talvez eu tenha passado um terço dos 18 anos que fiquei sem atuar em casas como aquela”, ri. “Acho que pouca gente foi nos lugares que eu fui, não só lugares físicos, geográficos, mas nos lugares da alma desses brasileiros”, acrescenta, criticando o olhar de “exotismo ou pena” quando as câmaras geralmente chegam nesses interiores do país. “A Lurdes é a chance de eu abrir esse baú e mostrar para todo mundo: ‘olha o que eu guardei esse tempo todo’”.
Vida de artista
Outra coisa que Regina Casé não queria ser era artista. Ela, que sempre foi de acordar cedo e aproveitar o dia, pegar uma praia, “tinha pavor” dessa palavra. “Quando eu via aquelas pessoas com echarpe no pescoço, com a mão assim [faz gestos de afetação de elegância], eu pensava ‘meu deus do céu, eu vou virar isso?!’”, ri. Outro problema era que ela nunca sacralizou o palco e, por isso, se achava inadequada para a atuação. Também achava que todo artista que alcançava muito sucesso tinha uma vida horrível, como se houvesse um preço a se pagar. “Eu achava que porque o artista viaja muito, era infeliz, não tinha família, não conseguia manter um casamento. E sempre achei essa ideia horrível”, lembra.
Contrariou a si mesma na maternidade e na arte, duas áreas em que, apesar dos seus temores, excedeu expectativas. “Aos trancos e barrancos, estou conseguindo conciliar tudo. Me sinto muito satisfeita com a mãe que eu sou, com a família que eu tenho. E estou muito satisfeita com a artista que eu sou”. É como diz dona Lurdes em um de seus muitos ensinamentos: a vida não é como a gente quer, é como é mesmo.
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