‘Que horas ela volta’: parece da família, mas não é
Filme de Anna Mulayart põe a torta relação patrão-empregada para todo mundo ver
Cinema não precisa ser social ou político ou mesmo engajado para engajar, além de entreter. Basta ser cinema – e bem feito. E se tem alguém que sabe disso, entre os cineastas brasileiros da atualidade, é Anna Muylaert. A cineasta paulistana, autora de Durval Discos e de É proibido fumar, dois filmes bastante elogiados dentro e fora do Brasil, acaba de lançar Que horas ela volta?, seu terceiro longa-metragem e, sem dúvida, seu trabalho mais inspirador.
O filme, lançado no começo de 2015 no Festival de Sundance, tem Regina Casé no papel de uma empregada doméstica que trabalha há tempos em uma casa de família, com a qual desenvolveu um vínculo emocional. A relação rui quando quando chega, vinda de seu Nordeste natal para São Paulo, sua filha – de cuja criação, enquanto ela criava o filho dos patrões, ela não pôde se encarregar. Casé levou o prêmio de melhor atriz em Sundance, e a partir de então o longa-metragem – que chegou ao circuito nacional depois de estrear primeiro no exterior – começou uma sólida carreira internacional com críticas elogiosas.
E é muito bom para nós, espectadores, que assim seja, porque a vida do filme se estende e mais pessoas o veem. Demorou, mas o cinema brasileiro finalmente adentrou – com naturalidade e sem maniqueísmos – o universo tão espinhoso da relação entre patrões e empregados domésticos no país. E fazendo um retrato fiel do que ela é todos os dias na maioria das famílias urbanas que vivem com uma empregada: parece "da família", mas não é.
Val, a empregada, cuida da casa e de Fabinho, o filho do casal Bárbara e Carlos. Seu cuidado com o menino é maternal, e é a ela que ele procura quando algo vai mal. Os dias passam, e do café da manhã à hora de dormir, os diálogos entre os personagens fazem parecer que está tudo bem, mas progressivamente, na trama, os olhares e os gestos vão se agrandando até revelar como as coisas vão mal.
A crise estoura quando chega Jéssica, filha de Val, para prestar vestibular na mesma universidade (de ricos) onde Fabinho quer entrar. Interpretada com maestria por Camila Márdila, atriz brasiliense pouco conhecida do público (ela atua também em Do outro lado do paraíso, de André Ristum), Jéssica confia em si mesma e, como diz, não aceita “ser tratada como cidadã de segunda classe”. Extravasando a área da casa destinada aos empregados, ela ocupa o quarto dos hóspedes, come o sorvete de Fabinho e pula na piscina – e com inofensiva rebeldia ensina a mãe a se questionar, assim como aprende também a respeitá-la.
Outros filmes brasileiros já tocaram na cegueira de uma classe média e média alta que acredita que as coisas vão bem, enquanto o comodismo e o preconceito de classe regem suas vidas. Um deles é o elogiado Som ao redor, de Kleber Mendonça, que usa a ideia da tranquilidade comprada com segurança privada para abordar o tema. Mas é Anna quem entra de vez em casa, onde, no Brasil, a senzala muitas vezes persiste com outras roupagens, maquiada com uma intimidade capenga entre patrão e empregado – fazendo o espectador se colocar na história.
Dá para olhar para Que horas ela volta? também pelo outro lado, de quanto se avançou. O que não dá é para ficar indiferente.
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