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Nos rastros da ‘Sodoma’ que desapareceu misteriosamente no norte da Argentina

Peças arqueológicas e um documento da coroa espanhola sobre Esteco desafiam a lenda bíblica que envolve a cidade efêmera dos séculos XVI e XVII

Plano de planta de Esteco II (Nuestra Señora de Talavera de Madrid), anónimo y sin fecha. Indica la asignación de solares en el trazado de esta ciudad. Archivo General de Indias (Sevilla)
Planta de Esteco II (Nossa Senhora de Talavera de Madri), anônima e sem data. Indica a atribuição de lotes no traçado desta cidade.Archivo General de Indias (Sevilla)
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El penacho de Moctezuma expuesto en el Museo Etnográfico de Viena es quizá la pieza que mejor representa el agravio del expolio. Fue el tocado - o uno de ellos - de Moctezuma II, emperador de Tenochitlán durante la llegada de los españoles a México (1519). Es un penacho de oro con piedras preciosas y 400 plumas de quetzal. Originalmente, formó parte de un paquete de 158 piezas que el Emperador Moctezuma regaló a Hernán Cortés para honrarlo como un visitante distinguido. Se cree que años después pasó a ser propiedad de la Casa Real de Austria, cuando el barco en el que viajaba el penacho fue atacado en Jamaica por corsarios franceses. Medio siglo después fueron adquiridas a un ladrón italiano por el archiduque de Austria, Fernando II del Tirol.
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“Agora vou pisando sua memória enterrada, Esteco; percorrendo seu esquecimento empoeirado, sua seiva seca, todavia ardente”, escreveu nos anos cinquenta Manuel J. Castilla, o maior poeta do noroeste argentino. Falava de Nossa Senhora de Talavera, mais conhecida como Esteco, uma das primeiras cidades coloniais do que viria a ser a Argentina, e a mais curiosa. Fundada em 1566 no matagal do chaco saltenho, na antiga Governação de Tucumán, alcançou um extraordinário desenvolvimento agropecuário. Foi um grande nexo com o Alto Peru, ao qual fornecia matérias-primas e produtos elaborados. E seus habitantes ajudaram a fundar Córdoba, Salta e La Rioja. Mas em 1692 um terremoto a varreu do mapa e a deixou presa em um dos grandes mitos locais.

Essa história diz que Deus castigou Esteco por sua opulência, luxúria e vaidade e a reduziu a pó. Em troca, salvou a cidade de Salta (140 quilômetros ao norte) por sua fé: os saltenhos carregaram no andor um Cristo e uma Virgem talhados em madeira, ouro e pedras preciosas que tinham vindo da Espanha um século antes após uma odisseia por mar e terra, e o terremoto cessou. A procissão do Milagre continua entre as mais importantes do calendário católico da América Latina.

No século XX, várias expedições rastrearam a legendária Esteco. Segundo documentos, em 1609, depois de 43 anos, havia migrado 100 quilômetros para o noroeste para se fundir com outro povoado e formar Nossa Senhora de Talavera de Madri. Um antropólogo de La Plata, Alfredo Tomasini, já falecido, conseguiu documentar os dois sítios a partir de 1999. A chamada Esteco I, na paragem de El Vencido, estava coberta de vegetação. E Esteco II, no município de Río Piedras, ficou exposta quando uma empresa movimentou o solo para plantar frutas cítricas. Foi deslumbrante. Nesta, que foi arrasada pelo terremoto, foram identificados setores urbanos, vestígios do cabildo e conventos, e o único forte colonial de adobe (barro) da América Latina. O paraíso perdido que os fiéis temiam e os poetas e garimpeiros sonhavam era agora uma joia para a ciência e uma escola de campo para os arqueólogos.

Mas não se soube muito mais até que uma fonte fundamental apareceu. Pesquisando no Arquivo e Biblioteca Nacional da Bolívia, o genealogista Gastón Doucet descobriu o Interrogatório para as Índias Ocidentais de 1604 e os Relatórios Enviados pelo Tenente de Governador, Vizinhos, Moradores e Residentes de Nossa Senhora de Talavera em 1608. Esta espécie de censo possui 355 perguntas e respostas transcritas em um documento de 140 páginas. São testemunhos de primeira mão, quase uma foto daquela efêmera cidade. Revela estruturas familiares, ofícios e preocupações concretas (o clima, as estradas, a subsistência). Três antropólogas fizeram uma laboriosa transcrição paleográfica (foi escrito com a letra processual encadeada do século XVI, a dos notários) e o Fundo Editorial de Salta a transformou em livro.

Fragmento del Interrogatorio para Las Indias Occidentales de 1604 y los informes remitidos por el teniente de gobernador, vecinos, moradores y residentes de Nuestra Señora de Talavera en 1608.
Fragmento do ‘Interrogatório para as Índias Ocidentais de 1604 e os Relatórios Enviados pelo Tenente de Governador, Vizinhos, Moradores e Residentes de Nossa Senhora de Talavera em 1608’. Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolivia (ABNB)

Memória escrita

“A riqueza do documento é enorme. Procuramos, com o maior respeito, abordar estas vozes, que permitem que nos aproximemos desta sociedade e desmistificar várias questões”, diz Julia Simioli, uma das autoras (ao lado de María Maschoff e Ana Porter), discípula de Tomasini. Por exemplo, a ideia de cidade espanhola. Na verdade, filhos e netos de espanhóis confluíram ali com montanheses [mestiços] e portugueses, que eram 30% da população. Entraram por Buenos Aires, foram comerciantes e alguns tinham escravos. Baltazar Martínes, por exemplo, declara que trouxe “negros do Reino de Angola”, com uma aparente permissão para traficá-los. Domingo Lorenço diz que comprou um casal de escravos no porto porque não tem “índios para servi-lo”.

O sistema de encomendas [mão de obra indígena gratuita] sustentava a cidade. Os moradores declaram seus índios como bens, junto com suas armas, vacas, éguas, ovelhas e cultivos (trigo, milho, videiras e algodão, que era usado nos pavios de velas). López, filho de um sevilhano e de uma chilena, tem 30 índios e dá-lhes roupa, saúde e doutrina (um padre que ia às suas aldeias). Días Moreno, filho de mexicano e de santiaguenha, declara 20. Xuares, de Lisboa, 40. Isabel, descendente de europeus, um mulato, 7 negros e 60 índios. Outra mulher diz 30; acrescenta que é filha, irmã e viúva de conquistadores que sofreram privações comendo “ervas selvagens e carne de cavalo”. Aparecem caciques de cerca de 20 etnias —até mesmo uma de canibais—, em vínculos um tanto mais complexos do que uma dicotomia branco-índio. E percebe-se a forte relação de Esteco com Santiago del Estero, a “Mãe das cidades” e capital da Governação.

Cuenco de mayólica de manufactura sevillana denominada 'Sevilla blue on blue' hallada en Esteco.
Tigela de majólica de manufatura sevilhana chamada ‘Sevilla blue on blue’ encontrada em Esteco I. Museo de Antropología de Salta

A Espanha sondava seus domínios com esses interrogatórios. Este foi implantado nas nove cidades de Tucumán, mas nunca voltou: o original está em Sucre com outros dois, e seis desapareceram. “Quatro séculos depois, isso lança luz sobre aspectos que, do outro lado do mar, nunca puderam conhecer”, reflete o antropólogo Leonardo Mercado, diretor do Museu de Antropologia de Salta, que neste ano dedicou a efeméride da Diversidade Cultural a Esteco. Com a contribuição de Simioli —os dois são especialistas neste sítio, que escavaram como estudantes e profissionais—, montou uma exposição de 60 peças recolhidas ali em 20 anos de campanhas arqueológicas. A coleção tem fragmentos locais e importados pelos conquistadores. Tem vidros, telhas, porcelanas chinesas, cerâmicas de Talavera de la Reina, cerâmicas indígenas e trompes [harpas de boca]. As peças nunca tinham sido expostas.

Tal como o censo, esta coleção fala de uma Esteco diversa e móvel, e ajuda a reconstruir sua história social, para superar o mito. Não foi tão hispânica. Nem tão opulenta (peças de ouro não apareceram). Nem seu ocaso foi tão abrupto. Estima-se que, no final do século XVII, devido a pestes e mudanças nas estradas, já estava liquidada. Antes do terremoto que a rotulou de Sodoma ou Gomorra argentina, mais do que uma cidade pecadora para castigar, era apenas um forte onde poucos soldados resistiam às tribos mais bravas do monte chaquenho.

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