Cinéfilos já planejam voltar ao cinema enquanto a indústria mundial se reinventa
Pesquisa mostra que 44% dos brasileiros ensaiam ida aos cinemas com retomada da agenda cultural. Brasil, Espanha e EUA lidam com medo do espectador e o atrasos de grandes estreias
Os dez meses de pandemia de covid-19 em todo o mundo adensaram a crise que o setor audiovisual enfrenta em muitos países e afetaram, mais especificamente, as salas de cinema, locais onde —até agora— os filmes vinham sendo consumidos. No Brasil, que tem cerca de 3.500 salas de exibição, a crise sanitária provocou o fechamento de 16,5% delas já em abril, de acordo com um levantamento feito pelo portal especializado Filme B. Com isso, pela primeira vez na história, o país registrou faturamento zero de bilheteria. Se depender dos fãs da sétima arte, no entanto, esse panorama tem tudo para mudar.
Uma pesquisa do Datafolha e do Itaú Cultural —que ouviu, por telefone, 1.521 pessoas de 16 a 65 anos de todas as regiões— mostra que 44% dos entrevistados apontam a ida ao cinema como principal atividade a ser realizada com a retomada da agenda cultural. Para 30% dos participantes, ver um filme na sala escura com telão foi o que mais fez falta no período de paralisação das atividades presenciais.
“Os cinemas são mais seguros que os bares, por exemplo, porque o ar condicionado das salas tem dutos de ventilação mais adequados, as pessoas ficam sentadas por uma hora e meia ou duas, sem se movimentar, sem risco de esbarrar umas nas outras”, argumenta André Sturm, dono do cinema Belas Artes, em São Paulo. Quando as autoridades estaduais e municipais começaram a autorizar a reabertura de espaços de ócio, ele passou a advogar enfaticamente pela volta do público aos cinemas. “Em São Paulo, tudo já reabriu, exceto as salas”, lamenta.
Nesta sexta-feira, o governador João Doria colocou 76% do Estado na fase verde de flexibilização do isolamento social, o que permitiria a reabertura dos cinemas, incluindo a capital paulista. “Neste caso, estaremos abertos já no sábado, temos a programação pronta para isso”, afirma Sturm, que diz já ter adotado as medidas necessárias. O local, considerado como um dos mais queridos cinemas de rua de São Paulo, terá metade de ocupação das salas e só quatro delas funcionarão, com meia hora de intervalo entre as sessões, para reforçar a limpeza. Barreiras de acrílico foram instaladas nas bilheterias e a cafeteria do local só funcionará no esquema take out. O álcool em gel, é claro, estará em todo o ambiente.
Tudo indica que o Belas Artes, que, ao longo dos anos, sofreu várias ameaças de fechamento, vai sair de mais essa crise. Já do outro lado do Atlântico, o Cine Paz, a sala mais antiga de Madri, fechou temporariamente as portas. Os irmãos Mariano e Carolina Góngora, que em junho estavam animados ao reabrir suas salas, foram fagocitados pela realidade. Sua clientela, muito fiel, não voltou. Aberto desde novembro de 1943, propriedade da família Góngora desde 1978, suas cinco salas com sessões numeradas (a menor, com 99 lugares, a maior, com 333, reformada recentemente, antes das restrições da emergência sanitária) não garantiram negócios suficientes para manterem as portas abertas. “Nosso público não é o de blockbusters”, diz Carolina Góngora.
“[Os espectadores] sabem que o recinto é seguro, que nossas medidas de prevenção funcionam. No entanto, têm medo de sair à rua, de pegar transporte público”, segue ela. No Brasil, existe o mesmo receio. Apesar da expectativa pelo retorno ao cinema, os brasileiros não parecem dispostos, paradoxalmente, a realizar atividades culturais em ambientes fechados: o levantamento do Itaú Cultural e do Datafolha, divulgado nesta quinta-feira, mostra que 56% dos respondentes não se sentem seguros em recintos assim. “Agora, vamos gastar muita energia para conscientizar o público de que as salas de cinema são espaços seguros”, lamenta Sturm.
Uma crise global
A crise também fez com que os estúdios de Hollywood adiassem as estreias mais esperadas para este ano —nem os gigantes Universal, Disney/Fox, Warner, Sony e Paramount escaparam disso—. Durante o último Festival de San Sebastián, na Espanha, o chefe de uma dessas grandes marcas da meca do cinema se queixou amargamente de como seus rivais haviam decidido não lançar filmes, seja estreando-os diretamente nas plataformas de streaming ou postergando-os para 2021. A alegação é que não vale a pena lançar um filme se grandes áreas dos Estados Unidos —como Califórnia e Nova York— mantiverem espaços de ócio fechados e se o restante do mundo não voltar com fluidez a uma sala de cinema. O comentário desse empresário mostrou o reverso dessa jogada: “Quando querem estrear os filmes, também não há cinemas onde fazer isso”. O mundo do cinema não é um território único (EUA + Canadá). “Existem outros, como a Espanha, que precisam de material".
E nesses outros territórios há negócios: a China já voltou às cifras de bilheteria pré-pandemia, graças principalmente ao produto local. E Tenet, de Christopher Nolan, já arrecadou mais de 300 milhões de dólares (cerca de 1,7 bilhão de reais) em todo o mundo.
Em 12 de novembro, no aquecimento pré-natalino, iria estrear 007 – Sem Tempo para Morrer, o 25º filme da saga Bond e provavelmente o último com Daniel Craig como 007. Antes da pandemia, a data de lançamento era abril de 2020, e agora a Universal voltou a adiá-la: a estreia será em 2 de abril de 2021. Duna (distribuído pela Warner), de Denis Villeneuve e um dos mais aguardados, passou de 18 de dezembro a 1 de outubro de 2021. O fim de ano ficou sem um blockbuster para adultos, e daqui até o término de 2020 estão programadas apenas duas grandes produções: Soul (da Pixar), no dia 20 de novembro, e Mulher Maravilha 1984 (da Warner), em 25 de dezembro. Corre todo tipo de rumores sobre Soul: desde o adiamento até o lançamento no Disney +, porque a Disney ficou satisfeita com os lucros de Mulan, a outra grande estreia própria que acabou indo diretamente para sua plataforma online nos países onde o portal está disponível. Esses lucros são “limpos” para o grande estúdio: não precisam ser compartilhados com os proprietários das salas de cinema.
Depois do adiamento de 007, a Cineworld, segunda maior rede de cinemas do mundo, fechou suas unidades a partir desta quinta-feira: 127 no Reino Unido (ali fica a primeira sala da rede) e 536 de nos Estados Unidos (onde a cidade de Nova York aumentou suas medidas de confinamento). A AMC-Odeon fechou 25% de seus 120 cinemas multiplex no Reino Unido apenas nesta última semana. É a serpente mordendo o próprio rabo: os telespectadores não vão aos cinemas porque não há blockbusters, os grandes estúdios não lançam blockbusters porque não há espectadores.
O principal negócio da indústria cinematográfica mundial passou de décadas de estreias de filmes para adultos com longos períodos em cartaz a sucessos do primeiro fim de semana com produções de efeitos digitais caros. O advento do “pegue o dinheiro e corra” desencadeou uma enxurrada de estreias de alto custo que mantinham o setor se equilibrando no ar. E assim o público, agora formado principalmente por adolescentes, foi sendo educado. É isso que têm os filmes com orçamentos superiores a 200 milhões de euros (1.32 bilhão de reais): se custassem entre 50 e 80 milhões de dólares (280 e 450 milhões de reais), não seriam necessários os primeiros finais de semana de grande sucesso de bilheteria, pois o boca a boca poderia fazer o trabalho. Mas esse paradigma mudou depois de Tubarão e Guerra nas Estrelas e se acentuou com filmes de super-heróis com origem nos quadrinhos.
Ainda há esperança?
No dia 30 de setembro, cerca de 70 diretores e produtores, incluindo nomes consagrados como Martin Scorsese, Clint Eastwood, Christopher Nolan, James Cameron, Patty Jenkins, Michael Bay e a produtora da saga de 007, Barbara Broccoli, divulgaram uma carta para a Câmara dos Representantes e o Senado dos EUA pedindo apoio aos cinemas do país, que permanecem fechados. Na carta, uma iniciativa do sindicato dos diretores e da associação dos proprietários de cinemas, afirmavam que 69% das pequenas e médias empresas de cinema estariam condenadas à falência se o Governo federal não as ajudasse.
Apesar de tudo isso, na Associação Espanhola de Exibidores de Filmes, a FECE, os dirigentes se recusam a ser apocalípticos. “É verdade que nunca vivemos algo assim, que não se compara a nenhum período anterior”, explica Borja de Benito, porta-voz da associação. “Como nunca tinha acontecido de não haver estreias de Hollywood, nunca faltava produto para as salas”, insiste, antes de dar a terrível cifra: o mercado caiu 68% em relação ao ano passado. “Mas somos otimistas, haverá cinemas em 2021. Em janeiro haverá muito produto, no próximo ano será lançado o dobro de blockbusters.” A FECE tinha estimado, durante as restrições mais severas em Madri, que em setembro o setor já estaria no nível dos negócios do ano passado. A cidade, no entanto, está de novo sob restrições. “Agora, quem sabe? Podemos confiar no cronograma de lançamentos, que muda a cada dia?”.
Em São Paulo, André Sturm conta que o Belas Artes “segurou as pontas” graças a uma parceria com a Secretaria Estadual de Cultura, que cedeu o espaço do Memorial da América Latina para a realização do Cine Drive-in, que, nas seis primeiras semanas (entre junho e julho), teve 100% de ingressos vendidos. Hoje, a média é de 95%. O grupo também lançou sua própria plataforma de streaming, que permitiu que seu catálogo —que vai dos clássicos de vários países ao cinema mais contemporâneo— chegasse a públicos de todo o país. “Isso ajudou a fortalecer a marca, mas ainda não é uma operação que se pague”, diz Sturm, que pedir dois financiamentos para manter o cinema.
Fechado, em abril, os custos do Belas Artes chegavam a 300.000 mil reais, mais da metade (180.000 reais) correspondente à folha de pagamento dos funcionários. Com o dinheiro do Cine Drive-in, Sturm pagou dois meses de salários da equipe, mas, ainda assim, ele admite que teve que demitir seis pessoas. Apesar de tudo, ele garante que o fantasma do fechamento já não paira sobre o Belas Artes. “Não pensei em fazer isso. Agora, acho que o público está tão ávido por cinema que, quando reabrirmos, corremos até o risco de ter filas”, diz. A mensagem otimista não esconde a preocupação. Pode acontecer que, quando James Bond quiser salvar o mundo em abril, os cinemas não estejam lá para vê-lo.
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