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A despedida de Marco Aurélio Mello, o “ministro do voto vencido” e da coerência que despertou polêmica

Ministro é elogiado por criminalistas por sua “coragem”, mas atuação do decano em casos de grande visibilidade, como a concessão de liberdade a traficante e ao goleiro Bruno, fizeram dele vidraça na corte

Gil Alessi
O ministro Marco Aurélio Mello.
O ministro Marco Aurélio Mello.Carlos Humberto /SCO/STF
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Após 31 anos ocupando uma vaga no Supremo Tribunal Federal, o ministro Marco Aurélio Mello está oficialmente fora do tribunal a partir desta segunda-feira, dia em que completa 75 anos —o limite de idade para ocupar o cargo. Ele chegou ao STF em 1990, por indicação do seu primo, o então presidente Fernando Collor de Mello —que seria alvo de um processo de impeachment dois anos depois. As mais de três décadas do decano na corte foram marcadas pelo dissenso. Ele foi um ministro que frequentemente divergiu das posições majoritárias dos colegas, o que lhe rendeu o apelido de “ministro dos votos vencidos”. Não era afeito a compor com os demais apenas para evitar o desgaste do isolamento entre os pares. Também colecionou polêmicas decisões monocráticas —tomadas de forma individual, sem o plenário—, o que o colocou em rota de colisão com os demais.

“Se existe uma regra de proteção ao réu, ele se esforçou em cumprir”, afirma o advogado e professor da Universidade de São Paulo, Mauricio Dieter. “Em matéria penal pode-se dizer que a carreira dele sempre foi marcada por muita coragem. Ele se esforçou para garantir direitos. Mesmo que fosse derrotado, ele foi uma peça importante na constitucionalização do processo penal”, diz. Em um contexto de herança “autoritária” no nosso código de processo penal, “em grande parte inspirado no código da Itália fascista”, o decano se mostrou um garantista, nome dado aos magistrados que defendem os direitos dos cidadãos ante arbítrios do Estado. “Tínhamos de um lado a Constituição de 1988, que afirmava garantias e direitos, e do outro lado um código penal ultrapassado. Então o Marco Aurélio conseguiu ser, ao longo da carreira, alguém que desafio o consenso de mero endosso de práticas autoritárias”.

Ganhou críticas por ser fiel ao princípio garantista em todas as circunstâncias. Uma de suas decisões mais recentes e controversas, que exprime a visão do ministro sobre garantias, foi a concessão de forma monocrática de um habeas corpus em outubro de 2020 que colocou em liberdade o traficante André de Oliveira Macedo, vulgo André do Rap, ligado ao Primeiro Comando da Capital. Marco Aurélio alegou que o prazo da prisão preventiva havia expirado, sem que o Ministério Público solicitasse sua renovação. O presidente do Supremo, Luiz Fux, chegou a suspender a decisão do colega, mas já era tarde: atualmente o criminoso encontra-se foragido e é procurado pela polícia. A suspeita é de que ele está no Paraguai. Quando o caso foi analisado pelo plenário, foram nove votos pela prisão do traficante.

Mas o caso de André do Rap não é a única polêmica envolvendo o agora ministro aposentado. Marco Aurélio coleciona decisões monocráticas que foram posteriormente corrigidas pelo plenário, ampliando o desgaste da corte. Em 2016 ele acatou pedido de liminar para afastar o então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), do cargo, sob a alegação de que por responder a processos ele não poderia estar na linha sucessória da presidência. Posteriormente os ministros derrubaram a liminar e reconduziram o emedebista ao cargo.

Marco Aurélio expôs uma de suas contradições como simpatizante da Operação Lava Jato no final da carreira. Ele votou contra a suspeição do ex-juiz Sergio Moro no caso envolvendo o ex-presidente Lula, quando o plenário da corte deliberou sobre o assunto em junho deste ano e ratificou a decisão tomada pela 2ª Turma em abril. O ministro se referiu a Moro como “herói nacional”, e disse ver com normalidade as conversas do magistrado com os procuradores da força-tarefa. Foi voto vencido.

Seu atuação em casos de grande visibilidade fizeram do ministro uma vidraça por parte de seus críticos: ele concedeu habeas corpus para Suzane von Richthofen, goleiro Bruno Fernandes de Souza, para o banqueiro Salvatore Cacciola (condenado por gestão fraudulenta, corrupção passiva e peculato) e para Regivaldo Pereira Galvão, vulgo Taradão (mandante do assassinato da missionária Dorothy Stang no Pará). Em março deste ano, descontente com a retirada de pauta do relaxamento da prisão do deputado federal Daniel Silveira (PSL-SP), detido por ameaças contra ministros do STF, ele chamou o relator do caso, Alexandre de Moraes, de xerife: “Longe de mim, depois de 42 anos de colegiado, desrespeitar o relator, ainda mais se o relator é um xerife”. Já o presidente da corte, Luiz Fux, foi chamado de “autoritário” na mesma sessão.

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Apesar das controvérsias, Marco Aurélio teve votos memoráveis, alinhado a uma visão de direito mais progressista na corte. Em 2012 o ministro foi favorável à descriminalização do aborto em casos de anencefalia do feto. Relator do processo que atiçou setores conservadores e a igreja, ele defendeu por mais de duas horas o que chamou de “dignidade humana” das mulheres gestantes. “O que está em jogo é a privacidade, a autonomia e a dignidade humana destas mulheres. Elas têm que ser respeitadas tanto as que optam por prosseguir com sua gravidez como as que preferem interrompê-la para pôr fim ou minimizar um estado de sofrimento”, afirmou. Foi seguido por oito ministros e dois ficaram vencidos.

Já durante a pandemia, foi um crítico da liberação de cultos e missas em meio às centenas de milhares de mortes provocadas pela covid-19. Em abril, após o colega Nunes Marques acatar —de forma monocrática— pedido liminar que autorizava o funcionamento de templos, Marco Aurélio criticou a decisão. “Espero que ele submeta sua decisão ao Plenário. Isso tem que ser feito urgentemente, já que o ato seria do colegiado, que estará reunido. Urge tranquilizar a população. Urge a segurança da população, da sociedade”.

Marco Aurélio também tomou uma decisão ousada em sua carreira na corte. Em 2002 ele assumiu de forma interina a presidência da República, e investido do poder do cargo sancionou o projeto de lei que criou a TV Justiça, idealizada por ele com o objetivo de dar mais transparência às sessões do STF ao transmitir os procedimentos da corte —e criticada por seus detratores pelo alto custo para pouca audiência.

A despedida

Seguindo o roteiro previsto neste tipo de cerimônia, Marco Aurélio foi elogiado pelos colegas na sessão de despedida no começo de julho. “Eu diria que servir ao semelhante é um traço indelével da biografia do ministro Marco Aurélio Mello, esse traço é marcado no seu ofício por decisões de verdadeiro humanismo e espírito constitucional”, afirmou o presidente da corte, Luiz Fux. O decano retribuiu os elogios, e mencionou um a um os demais membros da corte. Fez questão de colocar uma pitada de humor, ao alfinetar um dos colegas: “Agradeço a convivência judicante [no âmbito das funções do tribunal] com o ministro Gilmar Mendes —e apenas judicante; e a convivência fraternal com o ministro Ricardo Lewandowski”.

A saída do ministro abre espaço agora para um segundo ministro indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para a corte. A escolha recai sobre André Mendonça, atual Advogado Geral da União, que já foi anunciado pelo presidente. Ambos se reuniram nesta segunda. Para seu potencial sucessor, Marco Aurélio foi generoso ao dizer que Mendonça “tem a minha torcida para substituir-me no Supremo.”

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