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Coronel da reserva insufla extremistas a defender Bolsonaro de golpe imaginário

Em artigo dirigido a grupos da Escola Superior de Guerra e divulgado nas redes bolsonaristas, coronel da reserva fala em fantasioso movimento armado de esquerda e em guerra civil

Bolsonaro com comandante do Exército durante cerimônia em Brasília, em 2019.
Bolsonaro com comandante do Exército durante cerimônia em Brasília, em 2019.SERGIO LIMA (AFP)
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Um dos ideólogos da extrema direita militar, o coronel reformado Gélio Augusto Barbosa Fregapani vem alimentando a imaginação de seguidores do presidente Jair Bolsonaro com uma teoria delirante que cheira à armação: militantes de esquerda estariam sendo treinados para derrubar Bolsonaro através de um conflito armado. Num artigo dirigido inicialmente a grupos fechados, ligados à Escola Superior de Guerra (ESG), que depois chegou às redes bolsonaristas, o militar não se limita a opinar. Ele afirma que os comunistas se misturaram com criminosos em favelas do Rio de Janeiro e São Paulo, onde escondem armas em locais estratégicos e, longe de vigilância, são treinados por estrangeiros com formação militar.

“Teremos uma guerra civil?”, pergunta o coronel logo na abertura do artigo, intitulado Comentário Geopolítico, destinado a vender uma narrativa em que Bolsonaro, desde a eleição, é vítima de uma  conspiração fantasiosa cujos episódios, concatenados para derrubá-lo, criaram as condições para uma guerra civil. “Lamentavelmente a vemos se aproximar cada vez mais”, responde o coronel a si mesmo, afirmando que esquerda e direita atingiram patamar de “divergências irreconciliáveis”, um ponto de não-retorno e um clima propenso ao conflito. Como se o Brasil estivesse voltando aos anos de chumbo.

O coronel sugere que a suposta incursão da esquerda a redutos dominados pelo crime foi facilitada pela decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que, em junho do ano passado, restringiu as operações policiais em favelas do Rio durante a pandemia a situações excepcionais. A medida, aliás, foi ignorada pela polícia civil do Rio, na operação no Jacarezinho, em 6 de maio deste ano, que terminou com a morte de 28 suspeitos e de um policial, na mais letal ação da história da cidade. Na época, um dos delegados responsáveis pelo caso, Rodrigo Oliveira, chegou a falar que o “ativismo judicial” tinha “sangue nas mãos” pela morte do policial, crítica alinhada à tese de Fregapani e adotada pelos grupos bolsonaristas que atacam o STF. O próprio presidente, sem se referir diretamente ao texto do coronel, chegou a insinuar que “algo grave” estava para acontecer e, em várias ocasiões, afirmou que esperava um sinal do povo para agir.

No mundo real da política ou no radar de órgãos de segurança não há o mais pálido sinal de movimento armado, o que, na opinião de fontes ouvidas pela Pública, coloca a tese de Fregapani no papel de propaganda da extrema direita militar com objetivo de insuflar grupos de seguidores antidemocráticos de Bolsonaro, caso o mandato do presidente venha a ser ameaçado por um impeachment, pressionado pelo relatório da CPI da Pandemia ou diante de uma possível derrota na eleição do ano que vem. É também uma tentativa de atrair as baixas patentes das Forças Armadas e, ao mesmo tempo, evitar que o presidente continue perdendo apoio entre os militares da reserva, especialmente de oficiais com ascendência sobre a tropa. 

“O presidente Jair Bolsonaro quer envolver as Forças Armadas, especialmente o Exército, no projeto pessoal dele”, disse à Agência Pública o general Paulo Chagas, um ex-aliado do presidente, para quem já há uma clara divisão entre os militares da reserva. Dois terços deles, segundo avalia, já desembarcaram do bolsonarismo e buscam uma terceira via na política que escape da polarização entre Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O grupo deposita expectativas numa aliança entre o vice-presidente, general Hamilton Mourão, e o ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro. O general considera descabida a tese de guerra civil, sustenta que os comandos militares da ativa não irão se envolver em qualquer tipo de aventura, mas acha que há riscos de que parte das polícias militares acabe sendo atraída por ideias antidemocráticas e se envolvam em conflitos na defesa de Bolsonaro. 

“O presidente estimula os fanáticos. Se ele mandar, irão para as ruas criar tumulto. Não acredito que possa chegar a guerra civil, mas vai ter violência porque isso faz parte do plano de Bolsonaro”, afirma o general, se referindo à insistente defesa do presidente pelo voto impresso e acusações, sem apresentar qualquer evidência, de fraude na eleição de 2018. O que Bolsonaro quer, segundo Chagas, é encontrar um motivo para contestar o resultado em caso de derrota e agir com mais violência do que os seguidores do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que invadiram o Capitólio, no episódio que terminou com quatro mortos. Generais que romperam com Bolsonaro já enxergam o movimento do presidente como o roteiro de um conflito anunciado. Chagas acha que a impressão do voto eletrônico derrubaria o argumento de Bolsonaro. 

Na mesma linha de Chagas, o ex-ministro da Secretaria de Governo, general Carlos Alberto dos Santos Cruz, escreveu, num artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, que Bolsonaro frequentemente e de forma deliberada vem testando o Exército para “realizar seu projeto pessoal”, o que equivale a dizer que se for derrotado por Lula numa eleição, o presidente tentaria o golpe se encontrar apoio institucional. “Junto com seguidores extremistas, alimentam um fanatismo que certamente terminará em violência”, profetizou o general, para quem o presidente, movido apenas por um projeto de poder, age com “covardia” ao tentar transferir a responsabilidade de seus atos ao Exército.

O general Paulo Chagas acha que a tese defendida por Fregapani, que ele conhece dos tempos de ativa no Exército, “é uma maneira de exagerar para botar medo na cabeça das pessoas, de dizer que o Exército não tem força, que a soberania está ameaçada, para causar efeito psicológico. A hipótese de guerra civil não tem fundamento. Se houvesse preparativos ou mercenário estrangeiro por aqui, seria um problema de segurança nacional e as Forças Armadas saberiam. É retórica de terrorismo psicológico”, afirma o general, que diz respeitar o currículo do coronel, mas com uma ressalva: “Ele está sempre preparado como se a guerra fosse começar amanhã”. 

Coordenador do Movimento Policiais Antifascismo e diretor da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) o agente federal aposentado Sérgio Pinheiro afirma que, ao tentar envolver opositores com boatos sobre guerra civil, a direita quer um pretexto para a violência usando táticas da ditadura, aplicadas numa época em que extremistas militares praticavam atentados e tentavam jogar a culpa na esquerda. “O que se desenha no cenário é uma convulsão social, que vem sendo armada por policiais e milícias. A direita está tentando atiçar vivandeiras das Forças Armadas. Mas um golpe só seria possível com a participação do Exército, numa conspiração que partisse do Forte Apache”, diz Pinheiro, se referindo ao Quartel General do Exército, em Brasília. Para ele, a pretensão da direita é inviável, uma vez que os militares, ocupando cerca de 11.000 cargos no Governo federal, com ou sem Bolsonaro, estão no melhor dos mundos e não arriscariam perder a “boquinha” entrando numa aventura. “É só aprovar o voto impresso que evita o conflito se ele perder a eleição”, sugere o policial. 

Gélio Augusto Barbosa Fregapani, coronel aposentado.
Gélio Augusto Barbosa Fregapani, coronel aposentado.

O perfil de Fregapani e seu trânsito no meio militar dá força para a teoria da conspiração entre os bolsonaristas. Aos 85 anos, de formação eclética, onde prática e teoria se completam, autor de vários livros sobre inteligência e estratégias de guerra, Fregapani é anticomunista ferrenho e um dos poucos remanescentes da ditadura militar que ainda exercem influência nos quartéis na era Bolsonaro. Ele é cofundador do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), referência nacional na formação antiguerrilha, sediado em Manaus, de onde saiu, em setembro de 1973, um dos principais grupos das forças especiais empregadas pelo Exército no extermínio dos militantes do PCdoB na Guerrilha do Araguaia. 

No texto ele faz uma leve lembrança ao episódio Araguaia ao cantar “vitória” em caso de um novo conflito contra a esquerda: “(…) seriam derrotadas da mesma forma que foram em Xambioá”, escreve, ao referir-se ao município de Tocantins, entre o Sul do Pará e Norte do Maranhão, que à época representou uma espécie de capital do conflito. Fruto da imaginação do coronel, o “novo” movimento armado da esquerda, em caso de conflito, “se houver, será esmagado como aconteceu nas guerrilhas comunistas de 1968”.

Mais tarde, já na reserva, o coronel se deslocaria para a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), como chefe do escritório de Roraima e do Grupo de Trabalho Amazônia (GTAM), cargos que permitiram sua atuação em toda a região. Os relatórios de Fregapani atacam as ONGs que atuam na região, às quais classifica como representantes de interesses de dominação econômica estrangeira contrários à soberania nacional. Entre 2005 e 2008, Fregapani aliou-se aos arrozeiros que ocupavam ilegalmente vastas extensões da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, e chegou a levar o líder deles, o empresário rural e ex-deputado Paulo Roberto Quartiero, para palestra na sede da ESG, no Rio de Janeiro. Ele considerava Quartiero um herói da resistência contra interesses externos.

A atuação de Fregapani chamou a atenção da Polícia Federal, que chegou a investigá-lo por suposta participação em ações que culminaram no sequestro de quatro policiais federais, em 2005, e numa série de atentados dentro da reserva. Quando entrou na área para comandar a operação de retirada dos não-índios em 2008, o delegado Fernando Segóvia, ex-diretor-geral da PF, encontrou na fazenda de Quartiero mais de 90 bombas construídas para resistir a ação da polícia e chegou a levantar a suspeita de que haveria dedo do militar na organização da reação dos arrozeiros. Os relatórios de Fregapani ajudaram a influir na posição adotada pelo Exército que, procurado por Segóvia na ocasião, embora tenha uma base no coração da reserva, se recusou a participar da retirada dos invasores, tarefa que acabou sobrando exclusivamente para a PF. “Fiz a operação porque tenho a casca grossa”, disse Segóvia à Pública. O Comandante Militar da Amazônia à época era o general Augusto Heleno, atual chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, que a partir de 2019 ajudaria a formatar a polêmica política de Bolsonaro para a região.

O coronel Fregapani se autodefine como nacionalista, conservador e liberal, perfil que se encaixa como luva às pretensões do presidente Jair Bolsonaro nas questões centrais da Amazônia pelo atual Governo: mineração em terra indígena, legalização fundiária e exploração dos recursos naturais como eixos de ocupação dos vazios demográficos da região, estratégia que, como se sabe, colocaram o Brasil como o país do desmatamento, da grilagem de terra e da invasão permanente de terras indígenas por garimpeiros. 

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No texto, Fregapani levanta uma teoria esquisita, segundo a qual, Bolsonaro torna-se vítima da esquerda e de ex-aliados como os ex-ministros Moro e Luiz Henrique Mandetta (Saúde), que ele chama de “trânsfugas”. Seu foco, no entanto, são os comunistas, sobre os quais diz que “acreditava-se que com a derrota eleitoral de 2018 haviam aderido às teorias de Gramsci [filósofo marxista Antonio Gramsci] e desistido da luta armada”. Mas sustenta que com a fuga de aliados e o STF “legislando e provocando propositalmente o caos jurídico e administrativo esperando uma reação enérgica para acusar o presidente de estar dando golpe contra a democracia”, a “esquerda ideológica se fortaleceu” e tudo se transformou num complô para tirar o presidente do cargo. 

Como se Bolsonaro tivesse sido o sabotado e não o sabotador, o ápice da teoria da conspiração vem na análise que o militar faz da pandemia: “Para piorar ainda veio a epidemia (sic) do coronavírus em auxílio dos opositores, que a aproveitaram não se importando com as mortes que causavam nem com a quebra da economia. Nisto foram muito bem sucedidos, instilando medo na população e atribuindo a culpa das mortes ao Executivo, de mãos atadas pelo STF”, escreve. 

Para Fregapani, o desmanche do esquema político que amparava Bolsonaro e as fissuras na opinião pública foram aproveitados pelos opositores. Ele baseia sua tese de guerra civil também em uma declaração atribuída ao ex-ministro José Dirceu favorável à tomada do poder pela força. “Ele não enfrentaria o Exército em campo raso. A proposta dele [Dirceu] está numa convulsão social, provocada pelo caos completo, onde haverá greves, banditismo e os saques generalizados. Então farão ataques e saques simultâneos que as forças estaduais e municipais não conseguirão coibir, e a população já apavorada pelo coronavírus, acostumada a se acovardar, acatará as imposições. Na verdade, já estamos no início da guerra”, pontua o militar, invertendo, mais uma vez, a realidade dos fatos. Segundo ele, cerca de 35 mil presos libertados pelo Judiciário no Governo Bolsonaro, reforçariam os objetivos da esquerda para “forçar o Exército a agir em missões antipáticas contra massas famintas, perdendo a força o prestígio que ainda conserva”. 

Ele levanta a hipótese de que, em outra frente, o STF ainda tentará afastar Bolsonaro anulando as eleições de 2018 sob a alegação de uso de fake news na campanha, o que, na opinião dele, justificaria a posse do ministro Roberto Barroso na presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “Tudo faz parte de um plano, de um grande acordão para sabotar o Governo em plena pandemia. A verdade é esta, e só não enxerga quem não quer ver. Está evidente que as forças reativas da facção esquerdista/globalista acreditam que suas medidas pseudo legais consigam neutralizar o Exército e esperam só ter que enfrentar os nacionalistas de dentro e de fora do Exército, mas mesmo assim nós dispomos de uma motivação superior: somos milhões dispostos a lutar até a morte pelo nosso país, enquanto os que querem apenas tomar os bens dos outros podem até matar, mas dificilmente estarão  dispostos a se sacrificarem por isto”. Ele fecha o texto com o bordão bolsonarista: “É claro que não queremos uma guerra civil, mas se houver, lutaremos. Não será em nome de ideologias, mas em nome de “Deus e da Pátria”. Procurado pela Pública, o coronel não quis falar.

A delirante tese de Gélio Fregapani tem embalado sonhos e estimulado a verve belicista dos bolsonaristas. Mas nenhum deles se empolgou tanto como o presidente do PTB, o ex-deputado Roberto Jefferson, condenado por corrupção no mensalão, que distribuiu nas redes sociais um vídeo em que aparece vestido de justiceiro e armado com duas pistolas —uma num coldre atravessado no peito e outra na cintura, exortando correligionários à luta contra o “gayzismo” e o “comunismo” em nome de “Deus, pátria, família, vida e liberdade”. O culto ao ódio e ao conflito, como se vê, flerta com o ridículo.

Esta reportagem foi publicada originalmente no site da Agência Pública.

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