Os guardiões da floresta pedem socorro
As cheias de 2021 mostram as tendências de impactos das mudanças climáticas no dia a dia das populações tradicionais da Amazônia
Nem todo mundo já percebeu, mas já estamos vivenciando as mudanças climáticas em todo o mundo. Segundo a ciência, estamos caminhando rapidamente para ultrapassar o perigoso limite de 1,5 graus. Esse aumento de temperatura tem causado profundas transformações em todo o planeta, acelerando o degelo do Ártico e na Antártida, a desertificação no nordeste do Brasil e na África e muitas outras.
A Amazônia já está sendo vítima das mudanças climáticas. Uma das manifestações mais claras disso é o aumento na frequência de grandes cheias. Quando analisamos a série histórica do nível do rio Negro em Manaus, a tendência é claríssima. Se compararmos os primeiros vinte anos da sequência história de registros (1903 a 1923) com os últimos 20 anos (2001 a 2021), há um claro aumento na frequência de grandes cheias. No primeiro período, ocorreram 11 anos de cheias acima da média e um ano com níveis acima da cota de 29 metros, considerada uma cota de emergência em Manaus. No segundo período (2001 a 2021), ocorreram 18 anos de cheias acima da média e seis com níveis acima da cota de 29 metros. Provavelmente 2021 será uma das maiores cheias da história recente do rio Negro, superando o recorde dos últimos 118 anos, alcançado recentemente (2012).
Pelo menos dois terços dos municípios do Amazonas já sofrem as consequências da cheia, segundo boletim divulgado no início de maio pela Defesa Civil. Parte dos municípios está em situação de atenção, enquanto outros estão em estado de emergência. Em Nova Olinda do Norte, o rio Madeira já superou a cheia de 2014, que era a maior da história, e mais de 3.000 famílias já foram afetadas. Em Carauari, o rio Juruá também já alcançou um novo recorde histórico e o município está em situação de emergência.
O impacto desses eventos extremos é especialmente forte na Amazônia profunda, marcada pelas enormes distâncias e o isolamento de comunidades e aldeias. Alguns municípios do interior ficam a mais de 15 dias de viagem de barco a partir de Manaus e algumas localidades estão a mais de quatro dias de viagem a partir das sedes municipais. Essa é uma realidade totalmente distinta do restante do Brasil. As ações de socorro da Defesa Civil nessas áreas são muito mais incipientes e quase sempre abaixo do mínimo razoável. É necessário investir mais em ações de adaptação às mudanças climáticas.
O aumento da frequência dos eventos climáticos extremos na Amazônia profunda é um caso de injustiça climática. Os povos indígenas e as populações tradicionais da Amazônia são os guardiões da floresta, que têm um papel essencial na redução do desmatamento e não são, portanto, responsáveis pelo aquecimento global. Ao contrário, essas populações contribuem para atenuar as mudanças climáticas globais. Como essas comunidades e aldeias estão sofrendo os impactos dos eventos climáticos de forma particularmente severa, configura-se um dos mais marcantes casos de injustiça climática em todo o planeta.
Segundo Emerson Moreira, dirigente da Associação de Moradores da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Canumã, no Amazonas, os efeitos já chegaram nas comunidades. “Nossos pais e avós contam que antigamente o ar e a terra eram mais puros. Hoje a gente já não sabe mais quando é inverno e quando é verão, erramos na hora de plantar e colher por conta dessas mudanças e temos cada vez mais dificuldades em pescar e caçar”, desabafou o líder comunitário.
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Clique aquiAs cheias da Amazônia são diferentes das enchentes de outras partes do Brasil e, por isso, são chamadas de “alagação”. Os rios sobem alguns centímetros por dia até atingirem o pico e depois descem, no mesmo ritmo, ao longo de vários meses. Portanto, a alagação dura vários meses e os picos podem durar muitas semanas. Diante disso, a estratégia de atenuação dos impactos das alagações e adoção de medidas preventivas de médio e longo prazo devem considerar as particularidades da Amazônia profunda.
A emergência das cheias se soma à emergência das queimadas. A rápida aceleração do desmatamento nos últimos anos está levando a Amazônia ao ponto de colapso ecológico, chamado de tipping point na literatura científica internacional. Isso está agravando as enfermidades associadas ao aumento da poluição do ar decorrente das queimadas que, por sua vez, são fruto da ação humana, agravada pelas mudanças no regime de chuvas, com o prolongamento da estação seca.
O recente aumento da atenção que o mundo tem dado a Amazônia ocorre por razões trágicas: aumento do desmatamento, colapso ecológico dos ecossistemas, violência contra povos indígenas e populações tradicionais, extração ilegal de madeira, grilagem de terras públicas e enfraquecimento da gestão ambiental do governo. É necessário transformar a consciência global do problema em ações concretas.
O debate atual tem focado principalmente na relação entre o enfraquecimento da gestão governamental e o aumento dos crimes ambientais. De fato, o desmantelamento da gestão ambiental, somado a uma narrativa governamental de apoio à ação dos praticantes de crimes ambientais, é um fator muito importante para explicar a dramática situação que vivemos na Amazônia. Entretanto, é necessário ir além dos temas ambientais e adotar um enfoque sistêmico para os desafios da Amazônia.
Desenvolver a resiliência das comunidades e aldeias da Amazônia profunda é uma das maiores necessidades atuais da Amazônia. A ciência nos aponta para um aumento dos eventos climáticos extremos. Temos que combater a injustiça climática com programas estruturantes capazes de apoiar os guardiões da floresta a continuar protegendo esse valioso patrimônio natural que é essencial para o futuro do planeta.
Virgílio Viana é superintendente-geral da Fundação Amazônia Sustentável.
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