Lilo Clareto, os olhos do mundo na Amazônia, morre de covid-19 em São Paulo
Fotógrafo se notabilizou por retratar as violações ambientais e humanas que ocorrem na floresta desde a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte
“A máquina do mundo se entreabriu/ para quem de a romper já se esquivava/ e só de o ter pensado se carpia/ Abriu-se majestosa e circunspecta/ sem emitir um som que fosse impuro/ nem um clarão maior que o tolerável”, escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade. Os versos eram alguns dos favoritos do fotógrafo Lilo Clareto. Mineiro (assim como Drummond) de Passos e um dos 16 filhos de dona Geraldinha, mulher da roça que se alfabetizou aos 92 anos, e de seu Antonio, contador de histórias, Maurilo nasceu em 13 de abril de 1960. Logo se tornou Lilo, apelido dado pela irmã caçula Inês. Ele sabia declamar de cor as 32 estrofes de A Máquina do Mundo, e costumava fazê-lo enquanto cruzava a rodovia transamazônica ou quando subia de voadeira os igarapés da bacia do Xingu. Aquelas terras, tão belas e ancestrais quanto ameaçadas e violentadas, se tornaram o lar de Lilo em 2017, quando deixou São Paulo e se mudou para Altamira, no Pará. Retratar a dignidade dos povos da floresta e os abusos cometidos contra eles em nome do progresso se tornou o eixo de seu trabalho e sua razão de viver.
Mas então veio março do segundo ano da pandemia no Brasil, e Lilo Clareto contraiu a covid-19. Sem acesso a uma vaga de terapia intensiva na região, amigos de Lilo se mobilizaram para interná-lo em um hospital privado em São Paulo. Uma rede de solidariedade se mobilizou e organizou uma campanha para arrecadação de fundos que custeariam o tratamento do fotógrafo e auxiliariam na subsistência da família. Mas em 21 de abril, após mais de um mês de luta contra a doença, Lilo foi uma vítima de um país mergulhado em uma das maiores crises sanitárias de sua história e chefiado por um presidente negacionista.
“Nosso Lilo, meu Lilo, virou árvore, virou rio, virou floresta. Virou luz e virou chuva. Virou vagalume, borboleta amarela na Terra do Meio. Lilo, meu Lilo, você é em mim e em todos que te amaram e que foram amados por ti. Você é em cada janela que abriu no mundo com sua câmera. Lilo, você é”, escreveu a repórter e colunista do EL PAÍS, Eliane Brum, uma das principais parceiras de trabalho de Lilo, em uma mensagem de despedida. “A causa direta da morte foi covid-19. Mas não foi o vírus que matou Lilo. Foi quem disseminou o vírus pelo Brasil (...). Eu te responsabilizo, Jair Messias Bolsonaro, por assassinato”, seguiu a escritora.
“Topa se mudar comigo para Altamira?”, indagou Brum. “Librum, tou dentro”, foi a resposta. Ao lado da escritora, Lilo firmou uma aliança responsável por documentar os efeitos ambientais e a crise humanitária provocados pela construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, na Volta Grande do Xingu ―fotografar os efeitos da seca da usina na zona foi um de seus últimos trabalhos.
Fotógrafo e repórter se conheceram em 2001, quando trabalhavam na revista Época, durante reportagem nas terras dos Yanomami em Roraima. “Olhando desconfiados um para o outro, depois de avião, helicóptero e voadeira, finalmente alcançamos a aldeia indígena ensopados de chuva amazônica já à noite. Nos ofereceram vermes assados na brasa das fogueiras e um espaço no lado de fora da bela casa coletiva. Só cabia uma rede, Lilo e eu dormimos com o pé de um na cara do outro (...) com uma estreia dessa magnitude, ou nos amávamos para sempre ou nos odiávamos para sempre. Nunca mais nos separamos”, narra a repórter sobre a estreia da dupla.
“Altamira é um lugar de milagres”, disse Lilo certa vez ao jornalista inglês Jonathan Watts, do The Guardian. Na pequena cidade encravada na selva, o fotógrafo se apaixonou pela companheira Daniela Silva, com quem teve uma filha, Maria, de dois anos. Do primeiro casamento, com Lia, já tinha três: Bia, Fran e Gabi. Na lembrança de Bia, a primogênita, ele era um pai carinhoso que gostava de assistir “qualquer jogo de futebol” ou então dormir depois do almoço de domingo, “lá pelas cinco da tarde”. Como profissional, ela se recorda que o pai “sofria”. “Sofria muito em coberturas, como o acidente de avião dos Mamonas [Assassinas, grupo de rock vítima de um acidente aéreo em 1996], ou uma desocupação de uma área de sem-teto que acabou em conflito com a polícia e ele fotografou um homem morrendo. Chorava e ficava sem dormir por vários dias diante dessas crueldades”, relatou em texto publicado por Brum.
Para o EL PAÍS, além do drama dos afetados pela megabarragem de Belo Monte narrado ao lado de Brum, Lilo também contou histórias de esperança, como a mobilização de jovens de todos os cantos do mundo que se encontraram no coração da floresta, na Terra do Meio, na Amazônia, para ouvir e aprender com os os povos tradicionais como proteger a vida e o meio ambiente. Contou histórias de luta, como a dos moradores da maior reserva extrativista do Brasil, a Verde Para Sempre, em Porto de Moz, no Pará, e a morte de lideranças indígenas e a destruição da floresta na região da sua Altamira.
O coletivo Fotógrafos pela Democracia também se despediu do colega: “Nossos corações partidos agradecem sua atuação combatente, sempre crítica, de denúncia, de amor, de poesia. Suas fotos irão pulsar por ele, que não mais respira, agora voa!”.
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