Ferrovia de Integração Oeste-Leste embarca no trágico vagão de Belo Monte, Mariana e Brumadinho
Tem gente que ainda pensa que os povos tradicionais são contra o desenvolvimento, mas não é nada disso: acreditamos que ele não só é possível como bem-vindo, desde que vise o bem comum
O Brasil ainda não perdeu o trem da História, mas embarcou no ramal errado. Talvez o leitor nunca tenha ouvido falar da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL). Eu mesmo só soube de sua existência quando, sem aviso, invadiram o território quilombola onde vivo, o Araçá/Volta, que fica no município de Bom Jesus da Lapa, na Bahia. Isso aconteceu no fim de 2009. Assim como derrubaram árvores e destruíram roçados à nossa revelia, aterraram braços do Rio São Francisco, pretendem finalizar a estrada de ferro e o Porto Sul, que vem causando impactos socioambientais irreversíveis numa das regiões de maior biodiversidade do planeta, à boca miúda e passando o trator. Até o momento não aconteceu a consulta prévia, e as comunidades quilombolas não foram ouvidas, segundo a Convenção 169. Estão construindo a FIOL como foi feita a Usina de Belo Monte.
Construída sem a devida consulta à sociedade, a hidrelétrica se mostrou um erro: está arruinando o Rio Xingu, não produz a energia prometida e, pelo jeito, nem de lição parece ter servido. A ideia é que a FIOL ligue Figueirópolis, no Tocantins, a Ilhéus, na Bahia, passando por inúmeras comunidades tradicionais. Por não ouvir a sociedade e apresentar um EIA/RIMA (Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental) defeituoso, segundo pareceres do MPF e IBAMA no processo da FIOL, escolheram o pior traçado possível, margeando rios importantes, inclusive o São Francisco, uma região de rara beleza, cenário de histórias de Jorge Amado, onde fica a famosa Lagoa Encantada, incrustada numa área preservada de Mata Atlântica. Ali se encontra a maior diversidade de espécies de árvores em um único hectare, manguezais, mananciais e estuários. A ferrovia (FIOL) basicamente servirá ao Porto Sul em Ilhéus―Ba, outro empreendimento que está em construção na região. O governo federal marcou um leilão para a subconcessão de um trecho (FIOL 1) de 537 km da ferrovia, entre as cidades de Ilhéus e Caetité, para esta quinta-feira (8). Os impactos em conjunto das duas obras não foram levados em consideração e a população não foi consultada como devia, além de ser apresentado um EIA/RIMA defeituoso; isso é claro no processo de licenciamento. Já vimos esse filme de terror.
Outra semelhança com Belo Monte. A maior interessada na Ferrovia e Porto Sul é a Bahia Mineração S.A. (BAMIN), que obteve as concessões do futuro porto e da mina Pedra de Ferro, em Caetité―BA. Embora seja uma empresa brasileira, ela é controlada pelo Eurasian Resource Group (ERG), um conglomerado do Cazaquistão com sede em Luxemburgo, investigado por corrupção nos Estados Unidos e na Inglaterra. A concessão da BAMIN por 20 anos. O minério de Caetité é de baixo teor. O alto custo de operação e os gastos que a empresa terá para mitigar danos ambientais e sociais nos fazem desconfiar da viabilidade econômica do negócio. O uso da ferrovia (FIOL) e do Porto Sul para escoar a produção de soja do Centro-Oeste também não nos parece a melhor opção, dados os riscos envolvidos. Temos razões para temer que sobre para nós as ruínas de um elefante branco e a sombra de uma catástrofe.
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Clique aquiNesta parte, saem de cena as comparações com Belo Monte e entram dois desastres ambientais que jamais devem ser esquecidos: Os 20 anos de exploração da mina Pedra de Ferro (em Caetité – BA) legará à região uma barragem de rejeitos quase quatro vezes maior que a de Mariana e 15 vezes maior que a de Brumadinho. Caso o monstrengo se rompa, pode soterrar cidades inteiras e contaminar a Bacia do São Francisco. As obras já começaram a fazer estragos. O próprio edital do leilão aponta mais de 450 impactos socioambientais, 62% deles de alta gravidade, segundo relatório da Agência Nacional de Transportes Terrestres.
Tem gente que ainda pensa que os povos tradicionais são contra o desenvolvimento, mas não é nada disso: acreditamos que ele não só é possível como bem-vindo, desde que vise o bem comum. Os rios e lagoas e a fauna não são ouvidos, quando a sociedade se acovarda diante da sua responsabilidade; E sabemos que preservar a natureza não traz somente benefícios, também é uma obrigação de todo cidadão. É a Constituição quem diz isso, literalmente, em seu artigo 225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. A sociedade brasileira como um todo precisa tomar o trem certo, assumindo seu compromisso com o futuro.
Lucas Marcolino é Coordenador Geral da Associação Quilombola Agropastoril Cultural de Araçá Volta
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