Corrida de Doria e Bolsonaro pela vacina própria contra a covid-19 tem açodamento e omissões

Governador paulista apresentou pela manhã a ButanVac, que será produzida com insumos brasileiros, mas anúncio omitiu que a “concepção da tecnologia” foi de consórcio internacional. À tarde, ministro Marcos Pontes improvisou coletiva para anunciar outro imunizante a ser produzido no Brasil

vacuna ButanVac contra coronavirus en Brasil
O governador João Doria (PSDB) apresenta a ButanVac em entrevista coletiva nesta sexta.MIGUEL SCHINCARIOL (AFP)
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People walk on the International Square, amid the coronavirus disease (COVID-19) pandemic, at the border of Brazilian city Santana do Livramento and Uruguayan city of Rivera, Uruguay March 19, 2021. Picture taken March 19, 2021. REUTERS/Diego Vara
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“Uma vacina 100% brasileira.” Foi como o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), apresentou a ButanVac, que pode ser o primeiro imunizante contra a covid-19 totalmente produzido com insumos brasileiros. A vacina contra o novo coronavírus foi desenvolvida pelo Instituto Butantan com a “concepção de tecnologia”, livre de cobrança de royalties, feita por um consórcio internacional. No entanto, o esclarecimento sobre a participação estrangeira no desenvolvimento tecnológico da aposta de imunizante só foi feito pelo instituto depois que a Folha de S. Paulo revelou que a técnica anunciada como a usada pela ButanVac foi desenvolvida na Escola de Medicina Icahn do Instituto Mount Sinai, dos EUA.

O Butantan anunciou que pediria ainda nesta sexta à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a autorização para iniciar as fases 1 e 2 de testes clínicos (ou seja, em humanos), em que serão avaliadas segurança e capacidade de promover resposta imune com 1.800 voluntários. O anúncio do instituto paulista protagonizado por Doria foi o suficiente para detonar mais um capítulo da guerra das vacinas travada no Brasil por Bolsonaro e pelo Governo paulista ―adversários políticos declarados e ambos de olho no calendário eleitoral de 2022. Horas depois da divulgação da ButanVac, dois ministros do Governo Jair Bolsonaro, em Brasília, anunciaram que outro imunizante contra a doença, criado em parceria com a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, já havia pedido na quinta-feira o aval da Anvisa para início dos mesmos estágios de teste com humanos.

O ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, negou porém que o anúncio do imunizante federal —sem detalhes sobre a pesquisa e sem ter mencionado a iniciativa do Butantan— tenha sido uma disputa por holofotes. “Não tem nada a ver um fato com o outro”, resumiu. Foi ele quem apresentou a jornalistas, em uma entrevista coletiva improvisada ao lado do recém-empossado titular da Saúde, Marcelo Queiroga, o avanço da pesquisa feita em parceria com a USP.

A corrida de anúncios com omissões e sem todos os detalhes mostra o açodamento político como um complicador do panorama brasileiro em um momento que a pandemia já matou mais de 307.000 pessoas no país ―nesta sexta, registrou um novo recorde de mortes, mais de 3.600 em 24 horas― e quando apenas 6% da população foi imunizada.

O caminho da Butanvac

Segundo o presidente do Butantan, Dimas Covas, o imunizante a ser produzido no Butantan começou a ser desenvolvido em 2020. A vacina contra covid-19 foi enviada à Índia para ser testada em animais e, segundo ele, teve resultados “excelentes”. “De lá para cá, foi uma luta intensa, um esforço intenso de toda a equipe, tanto do ponto de vista da produção quanto das negociações internacionais”, afirmou Covas, sem mencionar a pesquisa do Instituto Mont Sinai, dos EUA. Segundo nota do Butantan divulgada após a reportagem da Folha, a instituição norte-americana não havia autorizado “a divulgação de seu nome em comunicados oficiais sobre a nova vacina.”

O Butantan será o principal produtor da ButanVac, com 85% da capacidade de fornecimento da vacina, em um consórcio que inclui outros dois laboratórios, um do Vietnã e outro da Tailândia, onde a fase 1 já foi iniciada. A ideia é que a vacina seja fornecida não apenas para o Brasil, mas também para outros países de rendas baixa e média, que têm tido mais dificuldades para comprar as vacinas atualmente disponíveis.

Dimas Covas afirmou que pretende enviar um dossiê de desenvolvimento clínico ainda nesta sexta-feira Anvisa para pedir autorização para as próximas etapas dos estudos. Depois, na fase 3, ela será aplicada em até 9.000 voluntários para se estipular a eficácia. A vacina, segundo o Instituto Butantan, já apresentou nos estudos pré-clínicos (feitos em animais) uma resposta imune alta, o que pode indicar que será necessária apenas uma dose para a imunização completa em humanos, uma vantagem que apenas um imunizante, feito pela Johnson & Johnson, tem. A expectativa é que caso os testes se mostrem favoráveis, ela já esteja disponível para a população no final do primeiro semestre deste ano. A vacina deve começar a ser produzida já em maio e o plano é disponibilizar 40 milhões de doses até julho.

A tecnologia da ButanVac é a mesma usada na produção da vacina da gripe, que já é feita no instituto, produzida em ovos de galinha, o que a torna mais barata e segura. “Essa é a geração 2.0 da vacina. Nós aprendemos com as vacinas anteriores e agora sabemos o que é uma boa vacina para a covid-19. Essa já incorpora algumas dessas modificações.” Como a ButanVac utiliza uma tecnologia já usada amplamente no próprio instituto, Covas acredita que isso será um fator a mais para acelerar o desenvolvimento do imunizante. As vacinas contra a covid-19 que foram desenvolvidas com mais celeridade no mundo demoraram menos de seis meses para completar suas fases 1 e 2. “Mas elas eram totalmente novas”, afirmou Covas.

A tecnologia do imunizante utiliza o vírus inativado de uma gripe aviária, chamada doença de Newcastle, que contém a proteína S (Spike) do coronavírus de forma integral. Ao ser inserida no corpo, esta proteína estimula a resposta imune à covid-19. Esse vírus da gripe aviária não causa sintomas em seres humanos, sendo uma alternativa muito segura, segundo o Butantan. De acordo com Covas, a ButanVac já utilizará a proteína S da variante do Amazonas do coronavírus, a P.1, mais transmissível e possivelmente mais letal. Ainda de acordo com Dimas Covas, nenhum outro imunizante contra a covid-19 no mundo utiliza essa tecnologia. Covas omitiu, no entanto, que essa técnica é justamente o tema de trabalhos desenvolvido pelo diretor e professor do departamento de microbiologia do Instituto Mont Sinai, Peter Palese.

O Instituto Butantan, ligado ao Governo de São Paulo, já produz com o laboratório chinês Sinovac a vacina Coronavac, responsável pela maior parte da vacinação realizada atualmente no Brasil e desprezada inicialmente por Bolsonaro, desafeto político do tucano. A produção da Coronavac, no entanto, depende do IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) fabricado na China. A vantagem da ButanVac será a produção com insumos totalmente nacionais.

Vacina federal

O anúncio da Butanvac pela manhã, no momento em que Bolsonaro participava de forma virtual da cúpula do Mercosul, foi considerado um trunfo político para o governador Doria, que fez questão de estar presente no evento —marcado para muito mais cedo do horário em que costumam ocorrer as entrevistas coletivas do Estado sobre o coronavírus. À tarde, na apresentação federal, Pontes destacou que “esse é um momento muito importante, muito feliz” para a ciência, sem mencionar diretamente o anúncio feito anteriormente em São Paulo.

Segundo o ministro, os estudos para a vacina estão sendo financiados por recursos do próprio ministério, após negociações por parcerias iniciadas em outubro passado. Também destacou que os pesquisadores começaram a apresentar a documentação para a Anvisa em fevereiro deste ano. “Eu estava na expectativa de anunciar. Ia fazer assim que entrassem [com o pedido na Anvisa]. Começaram em fevereiro a apresentar os documentos para a Anvisa. É uma coincidência que ele [Doria] tenha anunciado em São Paulo”, afirmou.

Os estudos do imunizante estão sendo coordenados pelo pesquisador Célio Lopes Silva, da USP de Ribeirão Preto, em parceria com as empresas Farmacore Biotecnologia e PDS Biotechnology Corporation, dos Estados Unidos. O ministro não soube informar na coletiva o nome da vacina —que, segundo divulgado depois pelo Governo e pela Anvisa, é chamada de Versamune-CoV-2F. Ainda segundo Pontes, não há previsão de data para início dos testes clínicos nem de início da aplicação.

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