‘QAnon brasileiro’ segue firme nas redes e se mostra alinhado a movimento de teorias conspiratórias dos EUA
Com temas e métodos que copiam original norte-americano, rede bolsonarista de fake news sabota vacinação e medidas de combate à pandemia, desacredita urnas eletrônicas, defende presidente, ataca seus adversários e luta contra conspiração imaginária da elite global comunista pela pedofilia
As eleições presidenciais que derrotaram o republicano Donald Trump e elegeram o democrata Joe Biden nos Estados Unidos foram fraudadas, e no Brasil vai acontecer a mesma coisa em 2022 — já aconteceu em 2020 e em 2018. As vacinas contra a covid-19 devem ser vistas com reservas quando não repulsa, o distanciamento social e as máscaras como forma de prevenção em meio à pandemia são uma farsa de prefeitos e governadores autoritários que querem quebrar a economia do país, e o melhor a fazer é adotar o “tratamento precoce” com cloroquina e outras drogas sem eficácia assim que contrair a doença, algo inevitável. O presidente Jair Bolsonaro e seu séquito de ministros mais ideológicos devem ser apoiados incondicionalmente, pois enfrentam forças literalmente demoníacas de uma elite nacional e global infiltrada no STF, no Congresso, na mídia e em todos os cantos, que busca implantar o autoritarismo comunista e promover a pedofilia e o aborto entre os povos sob coordenação da China. Adversários novos, antigos e imaginários são atacados o tempo todo com memes, notícias falsas e calúnias de toda a espécie. Notícias ruins são distorcidas até ficarem favoráveis, e qualquer dissenso é punido com trolagem e exclusão.
É principalmente em torno dessas temáticas, métodos e variações que vive atualmente o núcleo duro da rede bolsonarista de fake news nas redes sociais e aplicativos de mensagem, acompanhada pelo EL PAÍS e especialistas no início deste ano. Trata-se de uma espécie de ‘QAnon tupiniquim’ que começou a ser exposto pela imprensa nas eleições de 2018 e hoje é investigado pela Polícia Federal em dois inquéritos abertos no Supremo Tribunal Federal, na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News do Congresso e em mais de um processo no Tribunal Superior Eleitoral. Enquadrados e em alguns casos até presos, expoentes desse movimento de desinformação com fins de manipulação política a favor do presidente e suas ideias que imita temáticas e métodos do original norte-americano baixaram o tom, mas a milícia digital segue forte e ativa.
Após a invasão do Capitólio nos Estados Unidos no dia 6 de janeiro, e declarações do presidente brasileiro de que aqui seria ainda pior se o país não adotasse o voto impresso para as próximas eleições, especulou-se na imprensa e redes sociais de forma geral se apoiadores do presidente poderiam fazer algo parecido aqui caso ele perdesse a reeleição em 2022. Desde as eleições municipais do ano passado e a exemplo do que foi feito nos EUA, no entanto, a rede bolsonarista de fake news na internet dedica-se a desacreditar as urnas eletrônicas e preparar terreno para um eventual questionamento desfavorável no pleito.
De acordo com estudo da DAPP da FGV, bolsonaristas alvo das investigações no STF por espalhar fake news e promover a organização de atos antidemocráticos no ano passado, assim como deputados federais bolsonaristas, foram os principais responsáveis por espalhar informações falsas sobre fraude eleitoral no primeiro turno de 2020. Oswaldo Eustáquio, blogueiro preso duas vezes por ordem do STF, lidera a lista. Ele cumpre prisão domiciliar e está proibido de usar redes sociais. As postagens sobre o Brasil misturam-se às sobre a fraude apregoada por Trump nos EUA, dando suposta coesão à narrativa e criando uma ligação direta entre o grupo brasileiro e o norte-americano.
Os deputados federais do PSL Carla Zambelli, Bia Kicis, Filipe Barros e Daniel Silveira, além do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, apareceram no levantamento da FGV. Os blogueiros e influenciadores bolsonaristas Leandro Ruschel, Allan dos Santos e Bernardo Küster também. Alguns deles são alvo dos dois inquéritos no STF, de fake news e dos atos antidemocráticos, ambos sob controle do ministro Alexandre de Moraes. As postagens sobre fraudes nas urnas provocaram nova abertura de investigação, desta vez para descobrir quem está por trás da criação e divulgação das notícias contra a Justiça Eleitoral. No TSE, pelo menos duas ações tratam da atuação das milícias digitais nas eleições de 2018. De acordo com o monitoramento da FGV, cerca de 700.000 postagens sobre fraude do sistema eleitoral foram feitas entre o primeiro turno na eleição e o final de novembro. A hashtag mais disseminada foi #votoimpressoja, com mais de 38.000 publicações.
“O mapa de interações feito a partir do sistema de recomendações do YouTube mostra predomínio da repercussão da alegação de fraude nas eleições dos Estados Unidos entre os canais brasileiros”, afirma o estudo. “Junto a canais alternativos e hiper-partidários, conteúdos da grande imprensa são peças-chave para atrair audiências aderentes aos discursos antissistema. A organização e a coordenação em torno do tema produziram engajamento expressivo quando direcionado à crítica ao sistema eleitoral; do ponto de sua defesa não houve mobilização relevante”. O STF já solicitou à FGV o estudo sobre as eleições passadas e segue com os dois inquéritos abertos, sob segredo de Justiça.
Agravamento de pandemia atrapalha discurso negacionista
Sob fogo cerrado nas redes sociais pelo fracasso no combate à pandemia — simbolizado pelo atraso na aquisição e distribuição de vacinas e insumos contra o novo coronavírus e o colapso da falta de oxigênio em Manaus que alastrou-se para outras cidades da região — e falta de boas novas na economia, o campo bolsonarista tenta contra-atacar de forma aparentemente coordenada na guerra virtual. No mês passado, quando ficou claro o fracasso da operação montada pelo Ministério da Saúde para buscar 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca/Oxford na Índia, que negou o envio do lote, e a convocação de um panelaço contra o presidente ganhar força nas redes sociais, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) contra-atacou com a postagem de um vídeo de uma pessoa não identificada batendo com um pênis de borracha em uma panela. Em poucas horas, o termo “Angélica” subiu para os assuntos mais comentados do Twitter e lá ficou até o final da noite.
Ao ver as postagens, muitas com os mesmos textos e imagens diversas de pênis artificiais, era possível notar padrões de um ataque coordenado a apresentadora e seu marido, o também apresentador de TV e presidenciável Luciano Huck, que compartilhou uma publicação sobre o protesto mais cedo. No final da tarde, após o presidente conceder uma entrevista na “TV Bandeirantes” onde afirmava mentirosamente que não podia atuar de forma direta no combate à pandemia pois o STF havia proibido, em poucos instantes o tema “STF” subiu para o topo dos mais comentados com o argumento apresentado em links de “notícias” de sites governistas, vídeos de canais amigos no Youtube, memes e gráficos explicativos.
No dia seguinte, sábado, quem abriu o Twitter pela manhã encontrou no topo dos assuntos mais comentados um tema aparentemente desconectado do noticiário naqueles dias: “Adélio”. Afinal Adélio Bispo — aquele que tentou assassinar durante a campanha eleitoral de 2018 o então candidato à presidência da República Jair Bolsonaro — está preso desde o dia do atentado, foi diagnosticado com graves problemas mentais e não houve nenhuma novidade neste assunto. Ao investigar as hashtags é possível ver que as postagens, muitas delas feitas por perfis com características de robôs, fazem alusão a uma afirmação do deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), que publicou na mesma rede social “Impeachment ou morte”, sobre a incapacidade do governo de lidar com a pandemia. Distorcida, a declaração era circulada como uma prova de que Adélio, ex-filiado do PSOL, agiu em uma conspiração para matar Bolsonaro urgida pelo partido de Freixo. Nos grupos de WhatsApp, a dinâmica e sequência dos assuntos e o tom conspiratório é parecido.
Em relação à pandemia, a narrativa não tem funcionado. De acordo com levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas em 1,18 milhão de postagens no Twitter em 24 horas me meados de janeiro, auge da crise em Manaus, apenas 7,5% isentavam Bolsonaro do caos e propalavam a versão de que ele havia feito muito pelo Amazonas, não podia fazer mais por causa do STF e se havia problemas, a culpa era do governador Wilson Lima, como o próprio presidente declarou em suas redes sociais. Segundo levantamento do cientista político Márcio Coimbra, as menções negativas a Bolsonaro nas redes sociais chegou a 73%, na ocasião, um recorde desde que ele assumiu.
O ranking do Índice de Popularidade Digital (IPD), elaborado pela consultoria Quaest, também acusa o golpe recebido pelo bolsonarismo. A métrica avalia o desempenho de personalidades da política nacional nas plataformas Facebook, Instagram, Twitter, YouTube, Wikipedia e Google. Bolsonaro ainda é o primeiro colocado dentre uma lista de nove nomes que devem influenciar as eleições presidenciais de 2022, mas perdeu quase 20 pontos desde o início do ano e estava com 66,3 no final de janeiro—o IPD é medido em uma escala de 0 a 100, em que o maior valor representa o máximo de popularidade.
Por outro lado, os gráficos no estudo da FGV mostram uma bolha de opinião que apesar de espremida e diminuída pela crise atual, é impermeável a outras versões da realidade.
Na mira do STF
“O inquérito é centralizado no gabinete do ministro Moraes, ele que é o ‘delegado’ do caso, então não temos detalhes”, afirma um dos delegados da PF que trabalha nas investigações sobre as fake news e não pode falar abertamente sobre o assunto, que corre sob sigilo. “Mas a impressão é que o caso está rachado, se quiserem prendem mais um monte de gente, prendem. Acho que estão dando uma segurada, existe um componente político de acomodação das instituições”, avalia. Mas a artilharia está pronta caso haja um revés. “Quando essas investigações foram abertas, o STF estava literalmente sob ataque. O bote está pronto, se precisar aposto que colocam a coisa para andar rapidinho.”
Além de Eustáquio, outros expoentes do ‘QAnon brasileiro’ foram presos ou são formalmente investigados pela PF. Sarah Winter, líder do movimento de extrema-direita 300 do Brasil, grupo que acampou em Brasília no ano passado, atacava o STF e se apresentava como uma milícia política bolsonarista no auge dos protestos golpistas com a participação do presidente, também foi presa e hoje está em casa com tornozeleira eletrônica. Ela foi bloqueada na maioria das redes sociais e perdeu seu canal no Youtube. Allan dos Santos, dono do site bolsonarista Terça Livre, sofreu uma busca e apreensão e foi levado para depor pela PF em Brasília a mando de Moraes. Depois disso mudou-se para os Estados Unidos, onde virou correspondente do próprio site e uma ponte direta entre os integrantes do QAnon norte-americano e seu espelho nacional.
Quando ficou claro que o democrata Joe Biden venceria as eleições nos EUA em meio a contagem de votos Santos que fazia transmissões direto dos EUA para seu site, afirmou que a derrota era um plano de Trump para demonstrar a fraude eleitoral, e que haveria uma reviravolta em breve. No WhatsApp e Telegram, integrantes de grupos de discussão bolsonaristas apoiaram efusivamente a invasão do Capitólio em Washington como início da revolução trumpista, e esperam até agora a reviravolta prometida por Santos, agora adiada para março em alguns posts. Ele já havia sido bloqueado no Twitter, e nesta semana o Youtube extinguiu o canal de Santos da plataforma por violar as políticas de uso e propagar fake news.
O escritor Olavo de Carvalho, referência ideológica do bolsonarismo, também vive nos EUA e ajuda a propagar as teorias conspiratórias.
Vínculo com a “matriz”
Nos Estados Unidos, o termo “QAnon” refere-se a um Universo de teorias conspiratórias baseadas em fake news que agrega grupos e pessoas de extrema-direita, como os que invadiram o Capitólio antes da posse de Joe Biden. Surgiu em 2017, quando um perfil chamado “Q” em um fórum de discussão na Deep Web disse que tinha acesso a segredos do governo, que foram revelados em mensagens posteriores.
Em resumo, o ex-presidente Donald Trump estaria lutando uma guerra secreta contra uma conspiração de gente poderosa infiltrada na mídia, política e outras posições de poder para manter e explorar uma rede de pedofilia internacional. Muita gente acreditou e com o tempo, o termo passou a servir para designar outras teorias políticas conspiratórias e grupos radicais de extrema-direita. Até hoje, não sabe-se nos EUA quem seria o “Q” original, mas ele é considerado um herói pelo núcleo duro dos apoiadores do ex-presidente Trump.
O vínculo com o movimento QAnon norte-americano, apesar de não ser oficial, vai além da temática de fraude eleitoral e do uso de fake news para promover a pauta da extrema-direita. De acordo com relatório da CPMI das Fake News, as redes bolsonaristas passaram a dar ênfase ainda maior ao combate à pedofilia em meados do ano passado — nos EUA, um cidadão está preso após acreditar numa fake news e invadir uma pizzaria armado para resgatar supostas criancinhas vítimas da rede de pedofilia. Os grupos passaram a dar destaque, compartilhar e desenvolver mensagens voltadas ao combate à pedofilia ao mesmo tempo em que atacam, com falsas alegações, personalidades como o youtuber Felipe Neto e a apresentadora de TV Xuxa.
A estratégia seria, de acordo com profissionais que fizeram o monitoramento, desviar o foco em conversas de redes sociais sobre as graves crises nos campos econômico e sanitário no Brasil. Os autores do relatório apontam ainda uma técnica de apresentar “problema e solução”, quando o problema seria a pedofilia, e a solução, a ministra Damares Alves. Ao mesmo tempo em que atacam personalidades, os grupos “alavancam nomes do próprio governo como grandes combatentes contra o tema: além do próprio Jair Bolsonaro, a figura mais associada ao assunto é a ministra Damares Alves”, diz o relatório.
Segundo a narrativa bolsonarista Damares seria responsável por trazer ao Brasil a Operação Storm, uma fictícia força-tarefa internacional secreta sob o comando de Trump para combater a rede internacional de pedofilia, “revelada” por Q nos EUA e peça central no Universo QAnon norte-americano. Após as eleições norte-americanas no geral e a invasão do Capitólio em particular, proliferaram grupos em aplicativos de mensagem e redes sociais criando associações diretas entre o bolsonarismo e o trumpismo mais radical ligado a teorias QAnon.
Gabinete do ódio
De acordo com depoimentos de ex-aliados do presidente como os deputados federais Joyce Hasselmann (PSL) e Alexandre Frota (PSDB), documentos e relatórios da CPMI das Fake News, existe um gabinete do ódio que coordena as ações online. Formada por profissionais da mentira e calúnia lotados em gabinetes oficiais, canais nas redes sociais e sites de fake news, parlamentares de diversos níveis, milhares de voluntários e um sem número de robôs, a rede bolsonarista de fake news na internet está ativa desde pelo menos a eleição presidencial de 2018 e hoje contaria com integrantes que dão expediente no Palácio do Planalto.
De acordo com os ex-aliados, o coordenador do esquema de ação da milícia digital é o vereador Carlos Bolsonaro, com a ajuda de dois assessores especiais lotados na Presidência da República. Eles seriam os responsáveis por pautar a discussão das redes bolsonaristas. Parlamentares aliados e seus assessores teriam a missão de propagar as postagens e assuntos. O esquema inteiro seria impulsionado com a ajuda de robôs e contaria com financiamento de empresários aliados do presidente. A partir daí, a viralização dos conteúdos seira feita de forma orgânica pelos apoiadores bolsonaristas. O esquema funcionou nas eleições de 2018 e foi mantido após a vitória no pleito.
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