Silêncio na ‘República de Curitiba’ no ano mais emblemático do Brasil: “As pessoas radicalizaram e largaram o Moro”
Figura onipresente nos protestos pró-Lava Jato no Paraná e uma das primeiras integrantes do movimento ‘Curitiba contra a corrupção’, Narli Resende critica Bolsonaro, diz manter confiança no ex-ministro e afirma que as ruas “vão voltar” assim que houver uma vacina contra o coronavírus
Mesmo com o forte sotaque carioca, a professora e historiadora Narli Resende costuma falar que vai requerer a sua “cidadania curitibana”. Se depender de grupos que se identificam com o mote República de Curitiba, em alusão ao ex-juiz Sergio Moro e aos procuradores da Operação Lava Jato, ela receberia a honraria sem percalços. Nas ruas desde 2011 em defesa das bandeiras anticorrupção, Narli sempre foi figurinha marcada nos protestos, nos dias de depoimento dos acusados na sede da Policia Federal e no Acampamento Lava Jato, ativo em frente à sede da Justiça Federal de 2016 a 2018.
Mas em um ano especialmente caótico na política brasileira, com protestos antidemocráticos contra o Congresso Nacional e o STF, o apoio a Moro e a Lava Jato na República de Curitiba arrefeceu. Não é de hoje que menos carros circulam na capital paranaense com adesivos em defesa da operação e que os protestos diminuíram consideravelmente. O último foi um carreata pró-operação em março, logo no início da pandemia. Narli credita ao coronavírus o silêncio dos movimentos e da população em geral, mas justifica que as atividades do seu grupo continuam ativas on-line, e que as ruas “devem voltar” depois da vacina, principalmente por causa da crise econômica.
Por ora, o ativismo fica no mundo digital. “Para fornecer conteúdo às pessoas nós sempre entrevistamos no nosso Facebook e YouTube pessoas que defendam uma causa, como o fim do foro privilegiado, por exemplo. Tanto que no nosso movimento nenhum de nós é filiado a partido e candidato a nada. Não temos político de estimação.” Em 2018, no entanto, Narli foi candidata da deputada federal no Paraná pelo Avante, o que ela define como “a maior besteira” que fez na vida. “Pensei que era o momento, mas me desencantei”, diz. No pleito, fez 400 votos. Em 2022, ela torce por uma terceira via.
Parte dos ex-aliados anticorrupção escolheram o lado: entre Moro e Bolsonaro, ficaram com o presidente. “São ultra radicais, o que me surpreendeu muito. O pessoal deu uma guinada e virou meio que uma seita. O cara [Bolsonaro] fala e se aceita sem discutir. Isso para mim é radicalismo”, define Narli, que diz prezar pelo diálogo. Ela lembra de episódios como uma ida a uma reunião na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), em que conseguiu entrar com o auxílio do deputado Paulo Teixeira (PT). Também se diz fã de Chico Alencar (PSOL), de quem foi aluna e conseguiu uma assinatura em um manifesto contra o Fundo Especial de Financiamento de Campanha, o Fundão. “Eu sabia que ele era contra. O pessoal [do movimento] fica louco comigo. Se o cara é coerente, eu lá quero saber o partido ele?”
Formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Narli graduou-se em História e deu aulas nas redes pública e privada do Rio. Deixou a cidade após “sete assaltos e dois tiroteios na linha vermelha”. Hoje aposentada, mora em uma casa em Curitiba com o filho, José, 24, três cachorros e seis gatos ―todos adotados e retirados de situação de maus tratos. A vira-latas Bebel a segue por todos os cantos da casa, que Narli percorre com uma cadeira de rodas motorizada, repleta de adesivos da Lava Jato, “que é para o pessoal não ter dúvida”, diz ela, que tornou-se cadeirante em 2015, anos depois de uma cirurgia de coluna mal sucedida e problemas autoimunes que a deixaram com comprometimento nas articulações. “Bebel, sai daí! Você quer ser estrela, é? Não tem jeito, ela quer se exibir”, dizia, enquanto apresentava sua coleções de camisetas de campanhas em favor à Lava Jato.
São mais de 30 modelos de camisetas devidamente organizados em cabides, boa parte delas verde e amarelas. “Essa aqui é uma relíquia, vendeu que nem água”, conta ela sobre um modelo estampado com os rostos de Moro e dos procuradores Deltan Dallagnol e Carlos Fernandes dos Santos Lima. Embaixo das fotos, a frase República de Curitiba. Outro modelo favorito de Narli é a de rosto do ex-juiz com a hashtag #somostodosSergioMoro.
A ativista usa as camisetas em todos os lugares; no dia da entrevista vestia um modelo preto de uma das campanhas mais recentes do movimento que integra, o Curitiba contra a corrupção (fundado em 2014 por Cristiano Roger). “Com as eleições aproveitamos para o colocar o pessoal para pensar, explicar que algumas propostas às vezes não são da esfera municipal. Mas ela é atemporal. A corrupção continua, a campanha também”. Outro adorno que exibe com orgulho é um pingente de ouro com o formato da bandeira do Brasil, e uma singela pedra de diamantes. “É o Brasil de Ouro, que não se corrompe. O diamante está em cima de Curitiba, que é a pedra que não se quebra, porque foi aqui que surgiu a Lava Jato”, explica. Ao lado do pingente, uma aliança de ouro. “É só para lembrar o povo que eu sou casada [o marido de Narli hoje vive em uma casa de repouso, após sofrer sete AVCs]. Não é que seja aliança pelo Brasil não”, ironiza — o nome é o do partido que Jair Bolsonaro desejava criar, mas que teve aceitação pífia: faltam 490.000 assinaturas para que ele saia do papel.
“Não sou aquele negócio de tiete”
Narli acompanha pautas anticorrupção desde 2011. Recém-chegada a Curitiba, se envolveu em ações promovidas na época pela Federação das Indústrias do Paraná (Fiep) e com a associação de moradores do seu bairro. Em 2014 foi às ruas. “Acho que como todo mundo, meio sem saber por que estava ali. Mas eu já estava meio chateada com o que vinha acontecendo no Brasil. Quando eu era criança, ouvia dizer que o Brasil era o país do futuro. Eu tinha 10 anos quando meu pai dizia isso. Passou 20, 30, 40 anos… e o futuro não chegava. Então vou exigir esse futuro para meus filhos e netos”. Conheceu os atuais companheiros de ativismo ―palavra que prefere à militância― em um ato na Praça Santos Andrade. “Gosto mais de ativista porque é uma palavra de quem faz acontecer” , filosofa.
Em frente ao prédio da Justiça Federal, Narli comandou ações como um “abraço à Justiça” quando a operação começou, em 2014, e era uma das coordenadoras do Acampamento Lava Jato, que permaneceu em vigília por três anos. Outro momento marcante foi quando ela levou 24 rosas simbolizando os dois anos das operações. “eu não sei como, mas uma das minhas rosas foi parar na sala dele [Moro]”. Mesmo com o apoio incondicional ao ex-juiz, de defini-lo como um homem “mega simples” e com “brilho próprio”, Narli enfatiza: “Não sou aquela coisa de tiete”. Sua relação, diz, é cordial. “Não me coloco como amiga da família, até acho isso deselegante. Mas como eu saía o tempo todo na imprensa era impossível que ele não me conhecesse”.
O convite de Bolsonaro
A saída de Moro da magistratura é um capítulo à parte para Narli. Quando o então presidente eleito Jair Bolsonaro, logo após a vitória de 2018 fez o convite para o então juiz, a ativista não se disse animada. “Achei que ele estava arriscando muito. Não pelo dinheiro, mas porque ministro é um cargo volátil. Quando ele explicou que estava indo por um projeto maior, que envolvia questão carcerária, integração das polícias, banco genético de dados, e que ele teria carta branca, respiramos aliviados. E também pela equipe que ele levou, que era muito boa.”
Eleitora de Bolsonaro nos dois turnos, Narli fez campanha ―“não vou mentir”―, mas admite que sempre desconfiou do presidente e não esconde a decepção com o mandatário. “Eu tinha restrições a ele porque sou carioca e já conhecia o jeitão. Como a gente acha que todo mundo pode evoluir, pensei que depois de tanto tempo e da facada, se é que houve facada, ele teria amadurecido”, lembra. “Entre uma pessoa que era porta-voz de quem estava preso, que era o Fernando Haddad [em referência ao ex-presidente Lula], e alguém que abraçou nossas pautas, eu não tive escolha”, completa.
Particularmente, ela preferia o senador Álvaro Dias (Podemos), candidato em 2018 e ex-governador do Paraná. “Acho ele muito mais estadista, mas ele não tinha capilaridade nacional. E o Bolsonaro conseguiu fazer isso. Vestiu um personagem e conquistou todo mundo”, observa. Questionada sobre o porquê de sua desconfiança sobre a facada, Narli opina que o atentado contra Bolsonaro o ajudou a conquistar a vitória naquele ano. “Atualmente tô desconfiando até da minha sombra. Como Bolsonaro fez um personagem, foi muito conveniente ele não ir a debate nenhum. Não duvido nada. Sempre fico com um pontinho de interrogação”, afirma. “Acabou que foi muito bom para ele, ele ganhou a eleição naquela facada.”
O racha entre o Curitiba contra a corrupção e outros grupos formados na cidade, aliados à direita, e que também apoiavam a Lava Jato e Moro, ocorreu com a saída de Maurício Valeixo do comando da Polícia Federal, em abril. “De imediato nos manifestamos a favor do Dr. Valeixo, e ali os bolsonaristas não aceitaram a nossa crítica. A gente apanhou mais do que bife duro”, conta. Segundo Narli, o grupo já andava chateado com a fritura pública que Moro vinha sofrendo pelo Governo, e diz não acreditar que, no convite para o ministério, os dois tenham negociado como condição a ida do ex-juiz ao Supremo Tribunal Federal. Tampouco a convence as conversas que Moro e Dallagnol mantinham sobre as operações, tornadas públicas em reportagens do site The Intercept Brasil, conhecida como Vaza Jato. “Caráter ali não falta aos dois”, defende.
O novo emprego de Moro
Narli não vê com preocupação as críticas sobre a ida do ex-ministro e ex-juiz para a consultoria Alvarez & Marçal, administradora judicial do Grupo Odebrecht. “Se Moro sai ele é criticado, se não sai também. Ele deixou claro, inclusive em uma conversa conosco, que não queria mais trabalhar para o governo. E entendi que o dr. Sergio Moro não vai trabalhar com nenhuma empresa ligada à Lava Jato, é uma questão de ética dele. E eu não esperaria outra coisa.”
Em uma publicação recente nas redes sociais, Narli disse que Moro precisava trabalhar porque ele “não mama nas tetas do Governo”. “Deu um monte de like”, comemora. “Se ele aceitou a vaga, eu não acho que ele ia ser ingênuo de aceitar uma coisa que pudesse manchar a carreira dele”, avalia. Questiono se Moro não foi ingênuo em aceitar o cargo de ministro no governo Bolsonaro. “Por isso mesmo, acho que agora ele pensou. E ele nunca olhou para o seu próprio umbigo, mas do que poderia fazer ao país.”
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