Ana Escobar: “Relutei em aceitar a volta às escolas, até que os argumentos científicos me convenceram”
Pediatra integra grupo de médicos que assina manifesto a favor da volta às aulas presenciais e cita estudos que apontam que as crianças não são grandes disseminadoras de covid-19 e raramente desenvolvem casos graves da doença provocada pelo novo coronavírus
O debate sobre retomar ou não as aulas presenciais nas escolas públicas e privadas do Brasil ―paralisadas desde março com a chegada da pandemia de coronavírus ao país― já se arrasta há meses. De um lado, muitos pais se sentem inseguros, temendo que as crianças sejam infectadas pela covid-19. Se somam a eles, professores e profissionais de educação que também temem a contaminação e pedem mais protocolos para um retorno seguro. Por outro lado, há um movimento também grande de defensores da volta às aulas presenciais, que apontam os impactos negativos da privação prolongada das aulas, como prejuízos para a saúde mental, aprofundamento da desigualdade social, e dificuldades em garantir o aprendizado dos alunos. Nas últimas semanas, um manifesto assinado por centenas de pediatras brasileiros reuniu uma coletânea de artigos científicos que apontam que a reabertura das escolas é segura caso medidas adequadas de proteção sejam implementadas. Entre os principais argumentos, os médicos apontam que as crianças se infectam menos que os adultos, não são grandes “disseminadoras” da doença e que as complicações por covid-19 nessa faixa etária são raras.
A pediatra e professora Ana Escobar é uma das vozes favoráveis à reabertura dos colégios e defende que é necessário pressionar governantes para que a escolas tenham condições básicas de higiene e ventilação. Na avaliação da médica, uma das mais conceituadas do país, com mais de 30 anos de experiência de clínica, as crianças mais pobres são as mais prejudicadas, já que, em sua maioria, não possuem acesso aos meios digitais necessários para seguir o ensino à distância. Ela ressalta, no entanto, que todos os alunos perdem ensinamentos que só uma aula presencial fornece: a socialização, questões de cidadania e de empatia com outro, o “olho no olho”. Ela conversou com o EL PAÍS por telefone sobre o manifesto em defesa da reabertura das escolas no Brasil.
Pergunta. Nos últimos dias, vários pediatras têm se manifestado a favor da reabertura das escolas. Até setembro, a senhora não apoiava o retorno às aulas por causa da pandemia do coronavírus. O que a fez mudar de opinião ?
Resposta. Quando esse vírus desembarcou no mundo, tudo parou, porque precisamos entender o que estava acontecendo. Todo mundo ficou em casa e as crianças fora da escola. Até que a gente teve condições de estudar melhor o coronavírus e ver a apresentação clínica dele em várias faixas etárias, mortalidade, etc. Até setembro, a gente não tinha dados consistentes que justificassem a volta das crianças. Até porque tinha acabado de ser descrito pela Organização Mundial de Saúde (OMS) casos graves em crianças, uma síndrome associada à covid-19: a Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P). Então estávamos ainda avaliando como o vírus ia se manifestar nas crianças, não tínhamos certeza. Mas depois foram saindo trabalhos e estudos e agora no fim do ano a gente já possui estatísticas e alguma segurança.
P. Quais estatísticas?
R. Já sabemos que a síndrome inflamatória acomete 0,6% das crianças, tem um tratamento que pode ser efetuado, já sabemos os sinais de alerta. E sabemos que as crianças possuem uma taxa de transmissibilidade do coronavírus que não preocupa, elas não são altamente transmissoras. Elas transmitem, mas tem uma carga viral possivelmente menor. Alguns artigos são conflitantes, mas nenhum deles diz que as crianças são mais transmissoras do que adultos. Com tudo isso e com os protocolos de segurança se mostrando eficazes contra o espalhamento do vírus, estudos que apontam quais locais da sala de aula são mais seguros, o tipo de ventilação, já é possível pensar na reabertura das escolas. As vacinas estão aí, batendo na porta, com datas para começar e a gente entende que as crianças estarão no final da fila, exatamente porque sabemos que elas têm quadros mais brandos. Cerca de 90% são assintomáticas ou leves. Eu relutei em aceitar até que todos os argumentos científicos me convenceram. Dá sim para pensar numa reabertura pensada. Organizada, estruturada, dá para abrir.
P. Quais seriam os protocolos necessários? Há um abismo entre as condições de instituição de ensino privado e da pública. Acredita que todas as escolas públicas teriam capacidade de implementar esses protocolos?
R. Precisamos fazer um movimento para cobrar dos gestores uma postura, um plano de volta às escolas. Da mesma forma que conseguimos fazer um tanto de hospital de campanha, precisamos de planos de volta às aulas nas escolas públicas. As privadas estão mais tranquilas e já conseguiram se organizar. Mas na pública temos que ter algumas condições mínimas. Primeiro, uma organização de manter o distanciamento, não é complicado, isso é uma organização. Garantir que as crianças com mais de 2 anos estejam de máscaras. Terceiro, garantir equipamento de proteção para os funcionários. E o quarto, que talvez seja o mais complicado, por incrível que possa parecer, é a higienização da escola, das dependências depois de cada aula, e a higienização da mão das crianças com água, sabão e papel toalha. Isso tem que ter em todas as escolas. É um absurdo pensar que não exista isso atualmente. Mas, se garantirmos essas condições que são absurdamente básicas, com organização, dá para reabrir e fazer com que essas crianças tenham um ambiente escolar para ficar. Dependendo de cada escola e cada sala vão ter que fazer uma proposta de segurança. Garantir sabão, papel toalha e ventilação é o básico.
P. Muitos pais ainda estão com medo de que as crianças possam transmitir a doença para os adultos e para o grupo de risco, já que muitas convivem com avós e pessoas mais velhas. Como lidar com essa questão?
R. Cada família pode ter o direito de opção. Se tem um grupo familiar que convive com pessoas mais velhas ou do grupo de risco, pode-se optar por não mandar os filhos para a escola. E tentar uma forma de aprendizado virtual, porque seriam quase dois anos longe da escola. Seria uma opção até que o grupo de risco consiga a vacina. Uma criança que tenha problemas crônicos, idem. Não precisa a criança ser vacinada para as escolas voltarem a funcionar. Se os grupos de risco que convivem com as crianças forem vacinados, tudo dará certo. Isso minimiza o problema das famílias.
P. E qual o risco para funcionários e professores das instituições de ensino?
R. Há riscos para esse grupo, como também para os funcionários da saúde, para as pessoas que trabalham em comércios e as que precisam voltar para as empresas. Nesse sentido, os professores estão expostos aos mesmos riscos, posto que as crianças são pouco transmissoras. Uma caixa de supermercado, que tem contato diário com centenas de adultos, talvez tenha um risco ainda maior que a dos professores. O que o sindicato poderia lutar é para que os professores sejam priorizados na fila da vacinação, poderia colocar na sequência dos profissionais de saúde e idosos. Seria uma forma de estimular a volta.
P. Com o aumento de casos de covid-19 nas últimas semanas em vários Estados do país, a reabertura pode ser adiada?
R. Olha, quando a gente embasa em ciência, de pensar que a transmissibilidade da criança é tranquila não é alta e as medidas de seguranças são protetoras, tanto faz você estar no momento de pico ou não.
P. Muitos dos apoiadores da reabertura das escolas, argumentam que se bares e restaurantes estão abertos, é um absurdo a escola, algo muito mais prioritário, estar fechada. A senhora compartilha dessa lógica?
R. Eu não comparo escola com bar ou restaurante, porque são muito diferentes. O bar e o restaurante você pode ir uma vez na semana, três, mas você vai porque você quer. Há uma situação de livre arbítrio. Já a escola não é bem assim. Uma escola aberta, mais ou menos, “obriga os pais” a repensarem a mandar seus filhos, num esquema de quase todos os dias. Há uma espécie de obrigatoriedade, então vejo uma diferença básica entre a liberdade de decidir um almoço, uma saída, e a formação educacional e o futuro da criança, uma decisão mais complexa.
P. O que podemos aprender com os países que já reabriram as escolas durante a pandemia?
R. Acho que o maior aprendizado é que já sabemos que essa doença é mais branda entre crianças felizmente e avaliando o risco e o benefício da volta às aulas, o malefício dela ficar fora da escola, dentro de casa, sem condições de um ensino virtual porque ser uma criança carente é gigantemente pior que o risco da criança ir para a escola. Com as medidas de segurança nas escolas, a gente consegue também garantir a segurança da família e dos professores.
P. Quais são os principais prejuízos de um prolongamento de um fechamento das escolas?
R. Do ponto de vista de aquisição de conhecimento, estritamente, houve um prejuízo, mas é sempre recuperável, não tenho dúvida. A criança tem a vida para aprender, pode atrasar um ano. Você pode entrar na faculdade com 18, 19, 20 anos. Não tem essa pressa. A circunstância da pandemia é como uma guerra. O que é muito importante no ambiente escolar é a convivência mútua, outros ensinamentos que a escola fornece: a socialização, questões de cidadania, de empatia com outro, o olho no olho. Esses outros ensinamentos são muito importantes e a escola tem um papel determinante na formação das crianças. E há o caso da população mais carente, que tem na escola um ambiente onde elas estão seguras, uma alimentação, uma convivência social de acordo com a idade, que muitas vezes é diferente das comunidades onde vivem, que geralmente são violentas e possuem uma série de problemas. Então tirar as crianças um pouco desse ambiente de violência, não saudável para a infância, é importante. Precisamos pensar nessas crianças que são a maioria da população.
P. O “não-retorno” às aulas pode estimular a evasão escolar?
R. Isso é outro problema. A evasão é uma questão que preocupa muito, é uma tragédia, você tira da pessoa a possibilidade de aprender a pensar, entender o mundo, ter uma visão com mais abrangência, todo ser humano precisa disso. Dependendo da idade que ela deixa a escola ele não volta mais.
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