Erika Hilton: “Este é o país dos paradoxos, que elege mulheres negras e tem homens negros assassinados”
Mulher periférica, negra e trans, Erika Hilton foi eleita vereadora em SP com votação recorde. Ela sonha com candidatura “preta e travesti” à presidência, enquanto lamenta a morte de João Alberto
Erika Hilton é boa de briga. Na lista das muitas batalhas que travou em seus 27 anos, se destacam algumas vitórias. A primeira delas foi em 2015, contra uma empresa de transporte público em Itu (SP), sua cidade natal, que negava o uso de seu nome social na carteirinha de transporte escolar. Com uma petição digital teve mais de 100 mil assinaturas em dois dias, seu nome chegou ao conhecimento do PSOL, que a convidou para militar pelo partido. Alguns anos depois, criou o curso pré-vestibular da Universidade Federal de São Carlos —onde cursou Pedagogia— destinado a pessoas trans. Agora, Erika se prepara para uma batalha mais longa, de quatro anos, como a primeira mulher negra e transexual eleita vereadora de São Paulo. Com 50.508 votos, ela foi a parlamentar mais votada do Brasil nestas eleições. Ela quer mais: diz que ainda sonha com uma candidatura à Presidência da República de uma mulher negra e travesti. “Isso já seria um grande passo. Que meu corpo sirva para abrir caminhos para que outras possam vir”, afirma, em entrevista concedida ao EL PAÍS em 19 de novembro, quatro dias após ser eleita.
Ela celebra a eleição de outras e outros como ela —como Duda Salabert (PDT), eleita vereadora em Belo Horizonte e Thammy Miranda (PL), eleito vereador em São Paulo— e diz que esses resultados são uma “resposta ao avanço da extrema direita, do fascismo e do conservadorismo” no país. Ao mesmo tempo, lamenta a herança escravagista e colonial brasileira. Afinal, pouco após a entrevista, foi registrado o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, homem negro, de 40 anos, que foi espancado até a morte em um Carrefour em Porto Alegre, na véspera do Dia da Consciência Negra. Procurada novamente para comentar o caso, Erika não se esquivou: “Este é o país dos paradoxos sem fim. É o país que vai eleger mulheres negras nas capitais, porque estamos avançando pedagogicamente no resgate da nossa história, mas ainda temos um câncer político e social que impera, fazendo com que homens negros, pais de família, sejam brutalmente assassinados”.
Casos como esse parecem de certa forma servir como combustível para a guerra de Erika que, segundo ela, é contra contra o cistema, com c de cisgeneridade e de classicismo. “E com b de branquitude”, acrescenta. Logo após a vitória eleitoral, ela ficou de repouso em casa após um mal estar que atribui ao cansaço e adrenalina dos meses de campanha. Talvez também aos ataques transfóbicos dos quais passou a ser vítima nas redes sociais, assim que terminou a votação. Mas durante a entrevista Erika se mostra falante e expressiva, gesticulando muito com as mãos de longas unhas vermelhas.
“Consegui assimilar esse lugar em que que estou hoje e como cheguei aqui”, diz ela. Desde pequena, brincava que um dia seria presidenta do Brasil. Foi a primeira da sua família em se formar em uma universidade pública e atribui seu espírito de liderança ao signo de sagitário. Mas, apesar de ter sido uma “criança muito amada e protegida, com formação de cidadã”, como ela mesma conta, foi expulsa de casa na adolescência ao assumir sua transexualidade e, aos 14 anos, se prostituía nas ruas. “Quando me vi em situação de prostituição, de ausência de moradia, de desumanização, de ser uma não-cidadã, quando vi que meu corpo era enxergado apenas para ser violentado, comprado, massacrado, humilhado, comecei a perceber que havia alguma coisa errada. Mas, naquele momento, muito jovem, não tinha referências de luta e de militância”, lembra. Essas referências só vieram quando se reconciliou com a família e tornou-se universitária.
“Foi na universidade, quando briguei pelo curso pré-vestibular para trans e travestis, que a burocracia me mostrou que se nós não ocupássemos a institucionalidade, não iríamos sair do lugar de merda ao qual fomos sentenciadas. Ainda estamos nesse lugar, mas agora estamos organizadas e sendo convocadas a enfrentar essa onda fascista que se espalhou pelo Brasil”. Erika lembra que o Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis no mundo, que 90% delas se prostitui para sobreviver e que a expectativa de vida dessa população não passa dos 35 anos.
Por isso, para ela, ser a primeira parlamentar negra e trans de São Paulo é uma denúncia. “Significa que outras como eu não conseguiram romper com a miséria que a sociedade impõe contra nossos corpos. Estou aqui para romper com essa miséria e normalizar a presença de nossos corpos nos espaços de poder. Que cada vez mais corpos pobres, negros, transviados e favelados cheguem aqui, para que este lugar tenha a cara do povo. O povo não é essa minoria branca, rica, cisgênero e heterossexual”, brada.
Projeto político
“Eu sou um corpo pobre, negro, travesti. Um corpo que dormiu nos coretos das praças porque não tinha para onde ir. Minha vida inteira eu sempre precisei brigar para sobreviver”. É assim que Erika resume sua trajetória e como explica porque, apesar do medo de fazer política em um país que é lanterna no ranking de participação de mulheres nessa área e onde parlamentares como Marielle Franco são assassinadas, decidiu traçar esse caminho. “Quem é preto, pobre, periférico, nasce e vive com medo a vida inteira. Então, eu tenho medo, sim, mas ele não me paralisa”, diz, firme.
Ela concorreu a um cargo eletivo pela primeira vez em 2016, quando se lançou para a Câmara Municipal de Itu, mas não levou a campanha adiante. Já em 2018, concorreu em uma chapa coletiva do PSOL para a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), e acabou eleita como uma das codeputadas da Bancada Ativista, que reunia nove pessoas. Deixou o mandato este ano para concorrer a uma vaga na Câmara Municipal este ano porque sentia que suas pautas precisavam de protagonismo. “Acho que os mandatos coletivos podem ser possíveis e potentes, desde que com menor número de pessoas e que elas estejam alinhadas e partindo do mesmo lugar”, argumenta.
Ela diz que saiu do mandato coletivo porque este reunia pessoas “com uma visão completamente alienada do que é pisar em chão de terra” e pela falta de protagonismo da luta indígena, da luta pela educação e pelos direitos da população LGBTQIA+. “E tinha uma disputa com mulheres e homens brancos, porque a branquitude cisgênera não está disposta a abrir mão do seu lugar privilegiado. Chegaram vendendo uma máscara progressista e, na hora de construir esse trabalho, só vi um bando de mulheres brancas desesperadas por protagonismo e por manter seus espaços de privilégio”, acrescenta. Foi aí que ela decidiu protagonizar sua luta. “Não posso ficar me desgastando com quem ainda não entendeu que a revolução é preta, é trans, é pobre, trabalhadora e periférica. A revolução não vai vir do Alto de Pinheiros”, afirma.
Apesar disso, Erika garante que sua luta é interseccional e que não é adepta de cancelar alguém só por ser branco, rico, hétero e cisgênero. “As lutas do movimento negro e da comunidade LGBT não avançam se a branquitude e a cisheteronormartividade não compreenderem que lutas são essas”, diz. Erika lamenta que o próprio campo progressista, dito de esquerda, ainda não tenha entendido isso, em sua visão. Ela conta que, durante as eleições, lidou com adversidades e tentativas de boicote dentro do próprio PSOL. “A esquerda precisa entender que a pauta prioritária é a vida das mulheres, da negritude e da população LGBTQIA+, pois ainda não comprou para si essas pautas. A esquerda precisa fazer a lição de casa e entender que a briga não deve ser entre nós e sim contra o racismo, o machismo, a lgbtfobia, que também estão presentes na esquerda, só que ela veste a carapuça de desconstruída”.
Erika acrescenta que “falta ética no campo progressista” ao apontar como a direita, segundo ela, se une em prol dos interesses desse campo ideológico. “Eles se odeiam também entre eles, o tempo inteiro. Se atacam, mas na hora de retirar políticas públicas e dividir o dinheiro da corrupção, sentam na mesma mesa e comem do mesmo prato. A esquerda não precisa se amar, mas precisa ter coerência e coesão na formulação de políticas”.
Nesse sentido, suas prioridades são educação, moradia, emprego e renda. “As pessoas acham que falar de direitos LGBT é só falar em corpos, mas é falar de direito ao transporte, à moradia, à água potável, é falar de creche, de saneamento básico”, explica.
Em seu primeiro ano de mandato, o principal objetivo é ampliar o Projeto Transcidadania, criado em 2015 pela Prefeitura de São Paulo, que oferece formação escolar e uma ajuda mensal durante dois anos para pessoas trans e travestis em situação de vulnerabilidade. Erika pretende ampliar o número de vagas e a duração do programa. No modelo atual, ela considera que o Projeto representa uma “meia-cidadania”, uma “esmola”. “É inaceitável pegar um corpo abjeto na sociedade, dar a ele uma falsa sensação de cidadania, de renda, e depois de dois anos dizer ‘tchau, volta para a rua, para o crack, volta para a prostituição’. Queremos um projeto com continuidade. Se ele dura dois anos, vamos fazer parcerias com empresas privadas e matricular as meninas em cursos técnicos”, propõe.
Erika também pretende implementar um programa de moradia digna —São Paulo tem cerca de 30.000 pessoas em situação de rua— e fomentar o fortalecimento das Unidades Básicas de Saúde e da educação municipal, com escolas abertas nos fins de semana para que suas quadras de esportes possam tornar-se espaços de lazer para a comunidade. “A escola tem que ser um lugar para além do filho do pobre aprender a ler e a escrever só para assinar uma carteira de trabalho e vender sua mão-de-obra de forma barata. A escola não deve ser um lugar de sociabilização só para aprender a quem eu digo sim, senhor e sim, senhora e quem eu posso chamar de puta, viado e macaco. A escola precisa ser um lugar de convivência com a diferença”, defende ela, citando Paulo Freire.
Ela conta com a eleição de Guilherme Boulos, de seu partido, que disputará a Prefeitura em segundo turno com o atual prefeito Bruno Covas (PSDB), no próximo dia 25, para realizar esses projetos políticos. Mas também se diz pronta para enfrentar o que chama de “política de morte” dos tucanos na cidade, caso seja preciso. “Nesse caso, a bancada do PSOL na Câmara de Vereadores atuaria para minimizar os impactos dessa política sobre a população. Fiscalizar e obstruir será nosso papel, faremos um trabalho de redução de danos. Seremos uma pedra no sapato contra a desigualdade em São Paulo”, diz.
Erika faz política com seu lema favorito: sem pressa, mas com urgência. “Foram 388 anos de escravidão, são quase 140 de uma falsa abolição e nós ainda estamos aqui lutando e brigando”, explica. “Quando a gente caminha, ninguém retrocede. A ascensão do homem negro, da mulher negra, da travesti não significa o retrocesso de ninguém, pelo contrário. Angela Davis já dizia: quando uma mulher se movimenta, toda a sociedade se movimenta com ela”, diz. Antes tarde do que nunca.
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