Jovens reconstroem a memória e o rosto de mulheres negras que tiveram suas histórias apagadas no Brasil
Escrito e ilustrado por mulheres, livro ‘Narrativas negras’ traz a biografia de 41 nomes femininos desde a luta contra escravidão. Trabalho lançado por editora foi idealizado pela universitária Isadora Ribeiro, 21
Não se conhece o rosto de Maria Firmina dos Reis (São Luís, 1822-1917), a primeira mulher a escrever um romance no Brasil e pioneira na literatura abolicionista. Tereza de Benguela chefiou um quilombo que reuniu centenas de negros e índios no século XVIII, mas não se sabe ao certo onde ela nasceu nem como morreu. Mulher de Zumbi dos Palmares (União dos Palmares, 1655-1695), Dandara divide historiadores, e a escassez de registros sobre ela torna sua existência para muitos uma lenda. A primeira advogada do Piauí era uma negra escravizada e foi assim reconhecida 247 anos depois de escrever uma carta ao governador da então província denunciando maus-tratos que sofria nas mãos de um novo senhor: “Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha”, escreveu Esperança Garcia, em 1770.
Apoie nosso jornalismo. Assine o EL PAÍS clicando aqui
Apagamento histórico, reconhecimento tardio e situações de exploração —e de resistência— coincidem na trajetória de mulheres negras que ajudaram a construir e pensar o Brasil mas estão ausentes dos livros didáticos e de literatura ou, mais recentemente, relegadas a capítulos menores de obras que resgatam personalidades femininas, em sua maioria brancas, de relevância no país. A busca por referências sobre mulheres negras, duplamente ocultadas pelo machismo e pelo racismo, mobilizou cerca de 60 escritoras e ilustradoras a colocar algumas dessas vidas no papel: assim surgiu o livro Narrativas negras - Biografias ilustradas de mulheres pretas brasileiras, uma publicação bancada por meio de financiamento coletivo e lançada em outubro pela editora mineira Voo.
A ideia do livro, que traz o perfil de 41 mulheres desde a luta pela abolição da escravatura até os dias atuais, é da estudante de design gráfico Isadora Ribeiro, de 21 anos, que em abril de 2019 precisou elaborar um projeto de livro para a faculdade. “Eu sempre fiquei incomodada com a ideia de fazer projetos gráficos para a faculdade e depois deixar esses trabalhos dentro da gaveta. Esses projetos não são baratos. Decidi então fazer algo que eu pudesse publicar de verdade e que fizesse sentido”, conta a jovem, que mora em Belo Horizonte. “Como não sou escritora, fiz um chamado nas redes sociais para encontrar mulheres que pudessem escrever.” Surgiram interessadas, o projeto foi crescendo e outras ilustradoras se somaram ao trabalho, formando um coletivo de mulheres de diferentes idades e regiões do Brasil —nem todas são negras, mas Isadora afirma que teve como critério escolher aquelas comprometidas com a causa antirracista e com consciência de seu lugar de fala.
Não foi um trabalho fácil, a começar pela seleção de quem seria biografada. Também negra, Isadora brinca que na época não era capaz de lembrar mais que dois nomes de figuras históricas ou com trajetórias de vida inspiradoras para compor o livro, dada a falta de referências não brancas. Após um processo inicial de pesquisa, chegou a 30 nomes. Livros com listas de mulheres importantes foram uma das fontes iniciais para mapear as escolhidas. “Tive que comprar vários para conseguir achar esses nomes, porque na maioria deles havia uma amostragem muito pequena de pessoas negras”, comenta a fundadora do coletivo e idealizadora do livro, que assina o projeto gráfico e também fez ilustrações. Ao longo da produção, foram incorporadas sugestões das colaboradoras. “Por mais que no livro a maior parte das retratadas seja do Sudeste, as meninas do Norte, do Nordeste e do Sul trouxeram muitos nomes para que a gente tivesse uma diversidade regional”, conta.
Assim foram às páginas os escritos e desenhos sobre Maria Firmina, Tereza de Benguela, Dandara e Esperança Garcia, além de Tia Ciata (1854-1924), quituteira articuladora da cultura de samba no Rio, as baianas Mãe Menininha (1894-1986) e Mãe Stella de Oxóssi (1925-2018), a historiadora sergipana Beatriz Nascimento (1942-1995), as escritoras mineiras Carolina de Jesus (1914-1977) e Conceição Evaristo, a professora catarinense Antonieta de Barros (1901-1952) —a primeira deputada estadual negra do país e criadora do Dia do Professor— e a advogada alagoana Almerinda Gama (1899-1992), marco na luta pelo direito de voto feminino. Uma pesquisa de opinião ajudou na seleção de nomes contemporâneos que inspiram outras mulheres negras, como a cantora Elza Soares, as filósofas Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro e a vereadora Marielle Franco (1979-2018), assassinada no Rio.
Durante a produção, escritoras e ilustradoras encontraram em livros de história e na Internet informações escassas, contraditórias e erradas. Em uma feira de apresentação do projeto, ainda antes da publicação do livro, foram alertadas de que a imagem usada como base para a ilustração da escritora Maria Firmina e comumente associada a ela era, na verdade, um retrato de uma mulher branca que foi enegrecido —em julho, reportagem da BBC Brasil mostrou que até recentemente uma pintura do rosto da escritora gaúcha Maria Benedita Câmara (1853-1895) enfeitava a Câmara Municipal de Guimarães (MA) como se fosse o da romancista pioneira que morou na cidade.
A ilustração para o Narrativas negras foi refeita, inspirada em reconstruções mais aceitas por pesquisadores. Mas a real feição de Maria Firmina dos Reis é desconhecida, assim como a de muitas pessoas negras que viveram antes do surgimento da fotografia e que, diferentemente de seus contemporâneos brancos mais célebres, não foram retratadas em pinturas e esculturas ou tiveram suas características descritas em cartas e outros documentos, explica a historiadora Ynaê Lopes dos Santos, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de História da África e do Brasil afrodescendente (Pallas, 2017). Além disso, há casos de personalidades que têm seus rostos comumente atribuídos a imagens de outras pessoas fotografadas em expedições para estudos sobre raça, a partir do final do século XIX. Exemplo mais emblemático é a foto conhecida como Mulher de turbante, tirada pelo fotógrafo alemão Alberto Henschel (1827-1882) por volta de 1870 no Rio de Janeiro, que é encontrada em sites, cartazes de eventos comemorativos e exposições como sendo a de Maria Felipa de Oliveira, símbolo da luta pela independência da Bahia ocorrida 50 anos antes, ou mesmo de Luísa Mahin, associada à Revolta dos Malês no mesmo Estado, em 1835.
A própria pesquisadora mantém, há um ano, uma página no Instagram em que conta, no formato de breves perfis, a história de negros e negras do Brasil e da América Latina. Ela destaca que uma das principais dificuldades em recuperar a memória de pessoas negras e indígenas antes da abolição é o fato de muitas não terem produzido documentos na época em que viveram, até por não serem letrados. “Há pouquíssimos testemunhos deixados sobre esses homens e mulheres antes da abolição e temos documentos oficiais que não podemos tomar como verdade. Sempre foi preciso um esforço significativo para mapear a história dessas pessoas, com outros documentos”, afirma Ynaê Santos. Além disso, é recente o reconhecimento da tradição oral como fonte confiável de pesquisa. “A população negra anseia por essas histórias. A gente precisa saber de onde veio. Mas a história foi construída de forma a impedir que tivéssemos acesso a isso.”
Cofundadora do coletivo e responsável por escrever três perfis do Narrativas negras, a estudante de psicologia Júlia Rodrigues, de 18 anos, descreve a descoberta que teve sobre a vida de outras mulheres negras como um “reencontro” consigo mesma que a ajudou a se perceber na sociedade e se sentir mais acolhida, apesar de vivenciar o racismo. “O processo de aceitação de ser uma pessoa negra é doloridíssimo. Ser negro não é só cor da pele. Se saber negro é uma posição política”, afirma.
Os encontros virtuais e o processo de criação aproximaram as autoras do livro, e cerca de 20 delas integram o coletivo, que é voltado para a difusão dessas histórias nas redes sociais e oficinas de escrita e produção gráfica. Com o dinheiro arrecadado no financiamento virtual, também planejam distribuir cerca de 963 exemplares do livro para escolas públicas, bibliotecas comunitárias e espaços educativos, pedindo como contrapartida que as instituições beneficiadas participem de oficinas de capacitação oferecidas pelo projeto com o objetivo de estimular a abordagem mais consciente da obra. “O Narrativas foi a forma que encontramos de suprir nossas referências. E a gente quer que ele seja uma referência para outras pessoas também”, diz Isadora.