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O luto compartilhado de mais de 160.000 famílias brasileiras no Dia de Finados

Cemitérios adotam protocolos de prevenção da covid-19 para que milhares de pessoas possam, finalmente, render homenagens aos entes queridos que foram enterrados sem despedidas ou rituais

Thereza Carneiro Machado e Dalva Machado, mãe e filha, faleceram de covid-19 no espaço de 8 dias. A família diz que o mais difícil foi não ter podido enterrar suas familiares. LELA BELTRÃO / Vídeo: Gabriel dos Santos perdeu sua irmã para a covid-19. Vídeo: TONI PIRES

Não houve velório nem flores no caixão. Como muitos das mais de 160.000 famílias que perderam entes queridos para a covid-19 no Brasil, Gabriel dos Santos, professor e músico de 24 anos, só pôde observar por alguns minutos como o ataúde de sua irmã, Erika Regina Leandro dos Santos, que morreu aos 39 anos, baixava à cova de um cemitério de São Paulo. “Eu sequer pude colocar sobre um caixão uma corrente com uma plaquinha de metal e seu nome gravado, uma lembrança familiar, porque os coveiros nos apressaram. Só fizemos uma oração rápida”, lamenta Gabriel, que estava acompanhado por outras cinco pessoas, quase todas da família de sete irmãos. Neste 2 de novembro, Dia de Finados, ele, como milhares de brasileiros, vai aproveitar a data para homenagear a irmã.

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Em todo o país, os cemitérios adotaram medidas preventivas contra a covid-19 no feriado, com uso de máscaras obrigatório, medição de temperatura dos visitantes e distanciamento social. Além disso, os cultos e outras cerimônias foram realizados apenas em espaços abertos e com limite de pessoas. Alguns sepulcrários também ofereceram cerimônias online —como aconteceu com os funerais— e, em Guarulhos, um deles propôs um cine drive-in com a animação mexicana Festa no Céu.

Gabriel preferiu, no entanto, fazer um rito mais íntimo, já que, em sua família, cada irmão professa uma religião diferente. “Sempre faço um ritual para honrar meus heróis que já faleceram, então quis tirar o dia para ficar sozinho, em silêncio, e lembrar da minha irmã, tentar me conectar espiritualmente com ela, porque estou com saudade”, diz. Ele acrescenta que seu objetivo era ficar “tão em silêncio e tão em paz” que pudesse ouvir algo que a irmã quisesse lhe dizer, já que era ela uma figura materna para ele —os irmãos perderam os pais ainda na infância—. “Já faz um tempo que não sonho com ela, mas tenho sentido sua presença ainda mais forte nesses últimos dias”, conta, com serenidade, misturando sorrisos e lágrimas ao falar de Erika.

O professor e músico Gabriel dos Santos, de 24 anos, que perdeu a irmã para a covid-19.
O professor e músico Gabriel dos Santos, de 24 anos, que perdeu a irmã para a covid-19.Toni Pires

A psicóloga Magda Tartarotti, especialista em luto, considera que realizar um ritual no Dia de Finados, seja ela qual for, desde uma oração à escrita de uma carta, pode amenizar a dor provocada pela impossibilidade de despedida através de um funeral. “A data também é uma oportunidade de partilhar a dor, e dor partilhada é dor diluída", afirma. Para isso, relembrar e contar a vida da pessoa que se foi, os momentos passados com ela, pode ajudar. “Também é importante conversar com quem morreu. Nas mortes por covid-19, percebo que muitos carregam uma culpa por não terem estado presente na hora do falecimento, ou mesmo acompanhando a pessoa pelo menos por alguns momentos no hospital", acrescenta.

Mesmo trabalhando há décadas com pessoas que enfrentam a perda de entes queridos, Tartarotti diz que as referências profissionais para lidar com o luto também foram modificadas pela pandemia do novo coronavírus, devido ao ineditismo da situação. “Há outras formas de mortes repentinas, é claro, mas, no caso da covid-19, ocorre o roubo de um enredo. Quer dizer, não há uma transição. Você deixa a pessoa no hospital e nunca mais volta a vê-la”. A especialista lembra que o sofrimento emocional e psicológico é quase imensurável no caso de quem enfrentou mortes sequenciais na família. “Muita gente perdeu o pai e, semanas depois, um irmão ou um filho. Nesses casos, tem o luto e a expectativa aterrorizante do luto, porque, muitas vezes, tem algum outro familiar ou amigo internado. Tem horas que nem eu sei como o peito humano aguenta situações assim”, desabafa.

Para Gabriel, o jeito de aguentar a ausência da irmã é seguir adiante, tocando a vida entre o trabalho como professor de inglês e o hobby com a música. “Não consigo viver um luto pela morte dela. Tem momentos de tristeza, sim, mas não consigo me dar esse luxo de viver essa pausa", conta. Como Erika —atriz de formação, uma mulher vivaz e cheia de amigos— pregava o lema de “viver a vida e correr atrás das coisas", Gabriel sente-se na obrigação de fazer tudo aquilo que ela não teve tempo de alcançar.

Segundo Tartarotti, ele não é o único a sentir-se assim: “Tem gente que, em vez de mergulhar na dor, se permite apenas doses homeopáticas dela, se não não aguenta”. A psicóloga ressalta que não há receita para lidar com o luto, mas afirma que o lema que Gabriel aprendeu da irmã e no qual se agarra para não sucumbir ante a perda é essencial: continuar vivo e seguir adiante.

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- O mapa do coronavírus no Brasil e no mundo: assim crescem os casos dia a dia, país por país;

- O que fazer para se proteger? Perguntas e respostas sobre o coronavírus;

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