Com eleição em pleno atoleiro político, Rio assiste a uma disputa de prontuários policiais
Prefeito e candidato à reeleição, Crivella, que é alvo de investigação, escapa de nova proposta de impeachment. Processo de destituição do governador afastado Witzel avança
O Rio de Janeiro, tão acostumado a escândalos de corrupção nos últimos anos, conseguiu a proeza de estabelecer um novo patamar em matéria de crise política. O governador do Estado e o prefeito da capital viraram alvos de processos de impeachment simultâneos por suspeitas de corrupção em meio à pandemia da covid-19, isso em meio a uma crise fiscal profunda. O prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos), conseguiu escapar de novo de um processo de impeachment nesta quinta-feira na Câmara de Vereadores, por um placar de 24 a 20. Já o processo em curso contra o governador afastado do Estado, Wilson Witzel (PSC), caminha a passos largos na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).
O relatório para retirar o ex-juiz federal definitivamente do comando do Estado por crime de responsabilidade foi aprovado de forma unânime pelos 24 deputados presentes na comissão especial nesta quinta-feira. O processo segue para votação em plenário pelos 70 deputados. Depois, o resultado é entregue ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), onde é instaurado um tribunal misto formado por cinco desembargadores e cinco deputados estaduais. A decisão final ficará a cargo deste tribunal e do presidente do TJRJ. Witzel está afastado por 6 meses do cargo desde o fim de agosto por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Tanto Crivella quanto Witzel são investigados pelo Ministério Público por suspeita de corrupção em contratos com fornecedores de suas administrações em meio à crise do coronavírus.
Witzel chegou a ter sua prisão pedida pelo Ministério Público Federal devido aos indícios de corrupção em contratos relativos aos hospitais de campanha para tratar dos doentes de covid-19, mas o STJ não acatou. Além de superfaturamento nos contratos, os hospitais funcionavam de forma precária, com equipamentos essenciais inadequados e sucateados, como os respiradores utilizados nos pacientes mais graves, internados em UTI. A primeira-dama, Helena Witzel, é outra denunciada pelo MP sob acusação de participar do esquema através de seu escritório de advocacia. Durante as investigações, foram presos o ex-secretário de Saúde Edmar Santos e o pastor Everaldo, presidente do partido do governador. Witzel é apontado pelo MPF de ter cometido crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
Prefeitura
Crivella, pastor licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, é acusado pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro de montar um “QG da Propina” na prefeitura. O suposto esquema foi a razão para a abertura do processo de impeachment na Câmara dos Vereadores. O QG tinha um personagem central inusitado, o suposto operador financeiro do esquema, Rafael Alves. Rafael é irmão de Marcelo Alves, que foi presidente da Riotur, a secretaria de Turismo do município. Marcelo deixou o cargo em março depois de ser alvo de investigações do MP. Sem cargo formal na Prefeitura do Rio, Rafael Alves despachava em uma sala ao lado da presidência da Riotur, na Cidade das Artes, complexo cultural da prefeitura. Rafael direcionava licitações, burlava a ordem cronológica de pagamentos que o Tesouro Municipal devia a empresas e tinha poderes de indicar cargos, como no Tesouro e no fundo de previdência dos servidores do município.
Em um vídeo gravado durante a busca e apreensão na casa dele, em março, Crivella supostamente liga para um dos celulares de Rafael Alves para avisar de uma busca na Riotur e é atendido pelo delegado da Polícia Civil responsável pela ação. Ao perceber que não se tratava de Rafael ao telefone, Crivella encerra a chamada. A desembargadora Rosa Helena Guita, que acatou o pedido do MP para realizar busca e apreensão na casa de Crivella na semana passada, disse que “a subserviência do prefeito a Rafael Alves é assustadora”. Para Crivella, a operação em sua casa foi injustificada. O prefeito afirmou que não é réu em nenhum processo e que colocou à disposição seus sigilos telefônico, fiscal e bancário ao MP Estadual. O prefeito afirmou ser “estranha” a operação, “considerando ainda que estamos em período eleitoral”.
Corrida eleitoral e órgãos de controle
O caos na política do Rio ocorre às vésperas das eleições municipais em uma conjuntura de crise econômica aguda e elevado desemprego. O resultado é o desinteresse do eleitor em votar em um candidato. A pesquisa eleitoral mais recente, realizada entre 3 e 9 de setembro pela consultoria Atlas Político e divulgada pelo jornal Valor Econômico, mostra que 22,7% dos entrevistados pretendem anular o voto ou votar em branco. O Governo Witzel é desaprovado por 85,4% dos entrevistados, enquanto a gestão Crivella tem desaprovação de 74,5%.
Candidato à reeleição, Crivella está em segundo lugar nas pesquisas, atrás de Eduardo Paes (DEM), seu antecessor na administração do município. Paes também foi alvo de busca em sua casa recentemente devido a uma denúncia do Ministério Público Eleitoral. Trata-se de uma denúncia de pagamento de caixa 2 na campanha à reeleição do ex-prefeito, em 2012, feito pela construtora Odebrecht. Paes disse que a ação tem motivação eleitoral e foi uma iniciativa do procurador do prefeito Crivella em uma tentativa de desenterrar uma denúncia antiga e já publicada quando concorreu ao governo do Estado, em 2018. Paes não foi julgado por conta da denúncia.
Na pesquisa do Atlas Político, Paes tem 19,7% das intenções de voto, seguido por Crivella, com 11,1%. O atual prefeito está empatado tecnicamente com a deputada federal Benedita da Silva, do PT, com 9,6%. A deputada estadual e delegada Martha Rocha, do PDT, recebeu 6% das intenções de voto. A margem de erro da sondagem é de 3 pontos percentuais para mais ou para menos.
Com alta reprovação da população e chamuscado pelas denúncias recentes, Crivella pode não chegar ao segundo turno pois está empatado tecnicamente com a candidata Benedita da Silva. O prefeito tentará usar o apoio da família Bolsonaro a seu favor. O presidente já sinalizou que não participará da campanha, mas os filhos Flávio e Carlos, sim. O senador e o vereador são do mesmo partido do prefeito. “Se alguém fizer campanha tentando se associar à imagem do Bolsonaro, pode ajudar a levar ao segundo turno. O antibolsonarismo é muito forte na capital do Rio de Janeiro, mas Bolsonaro ainda conserva um prestígio em parte da população”, diz Ricardo Ismael.
Paes, por sua vez, evita criticar o presidente de olho nos votos que pode herdar de Crivella o prefeito não tiver fôlego para chegar ao segundo turno, principalmente do eleitorado da zona oeste. A região define a eleição na cidade por concentrar cerca de 40% do eleitorado. É a área que possui o maior percentual de evangélicos, grupo que apresenta alta taxa de aprovação a Bolsonaro. “A opção número um dos evangélicos é o Crivella, mas se o Crivella não for competitivo, não conseguir chegar ao segundo turno, a tendência é apostar no Eduardo Paes”, completou o cientista político.
O histórico recente dos governadores do Rio tem acabado em prisão. Os dois antecessores de Witzel estão presos devido às investigações do braço da Operação Lava Jato no Rio. O ex-governador Sérgio Cabral foi preso em 2016, após deixar o cargo, e está no Complexo Penitenciário de Bangu. Já o ex-governador Luiz Fernando Pezão, preso em 2018, está em prisão domiciliar. Os três têm em comum a acusação ou condenação por participação de esquemas de propinas em variadas secretarias de governo.
O casal Anthony Garotinho e Rosinha Matheus, que governou o Estado antes de Cabral, já foi preso. Hoje os dois estão em liberdade, embora processos que motivaram as prisões ainda tramitem no Judiciário. Garotinho chegou a ser preso cinco vezes. Rosinha, três. As denúncias mais relevantes que pesam contra o casal são o uso da máquina do Estado do Rio e da Prefeitura de Campos de Goytacazes para fins eleitorais. Outras denúncias tratam de irregularidades em contratos com a Odebrecht com a Prefeitura de Campos, no âmbito da Operação Lava Jato, quando Rosinha era prefeita da cidade e Garotinho, secretário de governo. Houve ainda a prisão do ex-governador Moreira Franco em 2019, quando era ministro do governo Michel Temer. Moreira Franco ficou preso por quatro dias devido à Lava Jato.
Na avaliação do cientista político Ricardo Ismael, da PUC-Rio, para sair do atoleiro que a política do Rio se encontra, é preciso fortalecer o Ministério Público Estadual e o Tribunal de Contas do Estado (TCE) ―dois órgão, no entanto, cujo mecanismo de renovação depende da classe política. Cabral só foi preso por investigações do Ministério Público Federal depois de terminar o mandato porque as duas instituições estaduais não atuavam como deveriam, lembra Ismael. “Tem um vácuo no poder que causa muito descrédito da população, mas não é o fim do mundo. Podemos sair dessa. São os órgãos de controle externo que fazem alguma denúncia com relação a algum de problema de licitação e precisam funcionar”, afirmou.
O cientista político ressalta que o controle interno do Governo pode ser aperfeiçoado. “Quando o Governo vai fazer uma licitação, ele credencia as empresas e não pode credenciar empresas que já foram envolvidas com corrupção, é o básico”. Outro ponto a ser atacado é o financiamento de campanha. Mesmo com a proibição do STF de doações de empresas a candidatos, é permitida a doação por pessoas físicas. “A pessoa física dona da empresa pode financiar. Seria preciso ter uma mudança na legislação. Quem financiar campanha de governador não poderia depois participar de licitação. O sujeito financia a campanha e depois vai cobrar a fatura”, disse.
O MPE do Rio tem atuado de forma consistente em suas denúncias tanto no caso Crivella quanto no caso das rachadinhas do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro (Republicanos), filho do presidente Jair Bolsonaro (Aliança Pelo Brasil) e atualmente senador. Em dezembro, o governador do Rio em exercício, Cláudio Castro, indicará o novo procurador-geral do MPE, com base em uma lista tríplice apresentada pela categoria, o que suscita especulações de que a enérgica operação de busca e apreensão a pedido da Procuradoria Geral da República no caso Witzel e o seu pronto afastamento do cargo por decisão monocrática no STJ em um primeiro momento tenham como pano de fundo o interesse em enfraquecer as investigações sobre o filho do presidente.
Impeachment em Santa Catarina
Não muito ao Sul do Rio de Janeiro, um outro processo de impeachment avança. Os deputados da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) aprovaram o andamento do processo de destituição contra o governador Carlos Moisés (PSL). Entre os 40 deputados, 33 votaram pelo afastamento, apenas seis se manifestaram contra e houve uma abstenção. A vice-governadora, Daniela Reinehr, também teve um processo de impeachment aberto e, assim, foi afastada do cargo junto com o governador. Ambos são acusados de crime de responsabilidade fiscal por terem dado um aumento salarial aos procuradores do Estado no ano passado.