Estuprada desde os 6, grávida aos 10 anos e num limbo inexplicável à espera por um aborto legal

Vítima era abusada pelo tio. Médicos e a Justiça ainda “avaliam” interrupção da gestação, garantida por lei em casos como este. Especialista critica demora que põe em risco vida da criança

Maioria dos abusos de crianças menos de 13 anos acontece dentro de casa.Getty

Gravidez aos 10 mata. Essa foi a mensagem, em forma de hashtag, que tomou as redes sociais nos últimos dias, após vir a público o caso de uma menina de 10 anos que engravidou após ser estuprada na cidade de São Mateus, no Espírito Santo. A vítima foi atendida no Hospital Roberto Silvares, nesse município, acompanhada de uma tia, no último dia 8 de agosto, de acordo com o boletim registrado pela Polícia Militar, dizendo achar que estava grávida. Após um exame de sangue confirmar a gestação de três meses, a criança contou aos médicos e a uma assistente social que era abusada pelo tio desde os seis anos e que nunca contou nada por medo de suas ameaças de morte. O caso de São Mateus é investigado pela Polícia e pelo Conselho Tutelar. A menina encontra-se em um abrigo da cidade, enquanto médicos e a Justiça ainda “avaliam” a realização de um aborto, garantido por lei em casos como este.

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“O Código Penal de 1940 já garante o direito ao aborto nessas situações. Não existe necessidade de avaliação jurídica no caso, principalmente porque há uma situação de risco de vida, por ser um corpo infantil, não preparado para uma gestação”, explica Debora Diniz, antropóloga e professora de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Segundo Diniz, o questionamento se deve a uma “ideologização da questão do aborto no Brasil”. Casos como o capixaba são pandêmicos: a cada hora, quatro meninas brasileiras de até 13 anos são estupradas, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, e a maioria dos crimes é cometido por um familiar. Em abril deste ano, uma menina de 10 anos deu à luz um menino numa maternidade do Rio Branco, no Acre. A gravidez foi descoberta após uma denúncia em setembro de 2019 e a Justiça investigava o pai da vítima —que apareceu morto dois dias após o parto—e um vizinho.

“Em tese, toda menina menor de 14 que engravida foi vítima de um estupro, mesmo que ela diga que consentiu ao ato sexual, porque, o Código Penal determina que relações sexuais com menores de 14 anos configuram estupro de vulnerável e, em razão da idade, se presume violência”, explica Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, que atua contra a exploração sexual de menores. “A única coisa que justificaria o questionamento é se a menina manifestasse o desejo de não abortar. Em tese, a lei garante que, imediatamente após fazer a ocorrência em delegacia, a vítima possa ir ao hospital abortar. Essa criança está sendo vítima de mais uma violação de direitos”, acrescenta.

Para Debora Diniz, o caso é um “claro exemplo” de como a criminalização do aborto representa “uma violação de direitos” para meninas e mulheres. “Ela tem que conseguir interromper essa gravidez em segurança, com os cuidados necessários pós-aborto”, argumenta. De acordo com a secretária municipal de Assistência Social de São Mateus, Marialva Broedel, a interrupção da gravidez depende de autorização médica e judicial, já que a gestação tem três meses, período limite para o aborto legal no país. “Precisamos aguardar o posicionamento do Judiciário, não podemos tomar nenhuma decisão precipitada, pela vida da criança. Aguardamos os critérios médicos e jurídicos para tomar uma decisão em conjunto com a família”, afirmou Broedel, que também disse que a menina está sendo acompanhada por uma terapeuta e uma obstetra.

O Tribunal de Justiça do Espírito Santo informou, em nota, que “se pauta estritamente no rigoroso e técnico cumprimento da legislação, sem influências religiosas, filosóficas, morais ou de qualquer outro tipo que não a aplicação das normas pertinentes ao caso”. Na quarta-feira (12/08), o juiz determinou a prisão preventiva do tio da vítima, que encontra-se foragido. De acordo com a Secretaria de Assistência Social, a criança vivia “em família extensa, com os avós” e era atendida pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) da Prefeitura de São Mateus. Os familiares eram “participativos” nas atividades do CRAS e não davam indícios de que o crime estivesse acontecendo.

Ministra da Mulher, Damares Alves acompanha caso

Desde que tomou conhecimento do caso, Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, tem usado as redes sociais para dizer que irá “ajudar” a vítima e seus familiares. Alves enviou, na quarta-feira, uma equipe de servidores da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (SNDCA) e da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH) para reunir-se com as autoridades de São Mateus.

“Sou obrigada a ver, ler e até assistir imagens aterrorizantes que alguns até acham que estou acostumada e que as notícias não me abalam mais. Pelo contrário, cada caso é uma vida. Toda história provoca em mim a mesma reação e sempre, em lágrimas, pergunto: até quando?”, questionou a ministra em outra publicação no Facebook. “Enquanto escrevo estas linhas crianças estão sendo abusadas no Brasil”, escreveu. Alves não mencionou, no entanto, a realização do aborto ao qual a vítima tem direito. Contrária à interrupção de gestações, a ministra já discursou diversas vezes “a favor da vida” e contra mulheres que recorrem à prática.

Debora Diniz critica essa postura, tanto nas redes sociais quanto em conversa com o EL PAÍS. “Ajuda’ não é uma categoria de um Estado democrático de direito baseado na proteção aos cidadãos. O que pessoas vulneráveis, como essa criança, precisam é de garantias. Essa menina não precisa de ‘ajuda', mas de aborto legal e seguro”, afirma.

Diniz lembra que, historicamente, a questão do aborto é “lançada na roda de debates”, principalmente quando os governos atravessam situações sensíveis —como pandemia de covid-19 — “para provocar um sentimento de pânico moral”.

“Esse caso será paradigmático sobre o uso ideológico da questão do aborto para atiçar afetos e posições polarizadas e agressivas sobre o que deveria ser simplesmente uma questão de saúde pública e, neste caso específico, uma investigação criminal ao agressor e o cuidado e atenção à saúde e dignidade dessa menina”, diz a especialista, que também é colunista do EL PAÍS.

Onde denunciar

Com a pandemia e as medidas de isolamento social, autoridades têm se mostrado preocupadas pela diminuição de denúncias de crimes contra crianças. Em junho, o Tribunal de Justiça de São Paulo lançou a campanha “Não se cale! Violência contra a criança é covardia, é crime! Denuncie!”. O público-alvo não é somente a criança, a qual a campanha busca acolher e informar, mas também o adulto, que pode estar às voltas com uma situação de violência e precisa estar atento.

Saiba quem procurar:

Disque 100: canal do Governo federal que recebe denúncias de violação dos direitos humanos. Funciona 24h também em domingos e feriados, a denúncia pode ser anônima e a ligação é gratuita.

Conselho Tutelar: principal órgão de proteção a crianças de adolescentes. Contatos podem ser encontrados no site de cada prefeitura.

Polícia Militar: em casos de emergência, disque 190. Ligação gratuita e funciona 24h, bem como as delegacias.




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