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‘Um crime entre nós’ retrata um tema tabu no Brasil: a violência sexual contra crianças da qual ninguém quer falar

A cada hora, quatro meninas brasileiras de até 13 anos são estupradas, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A maior parte das vítimas tem até 5 anos de idade

Teaser do documentário 'Um crime entre nós'.Vídeo: Maria Farinha Filmes

Enquanto o Brasil acompanha, atento, o avanço da pandemia de covid-19, crescem no país os números de uma outra epidemia que se arrasta há décadas, mas continua invisível. A cada hora, quatro meninas brasileiras de até 13 anos são estupradas, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A maior parte das vítimas tem até 5 anos de idade. 90% desses casos de violência acontecem em casa, e 72% das testemunhas não denunciam. “Se a gente tivesse o mesmo olhar que temos sobre o coronavírus para a violência sexual infantil, estaríamos falando também em termos de epidemia, de uma crise de saúde e segurança pública”, afirma, taxativamente Luciana Temer, diretora do Instituto Liberta, que atua no combate à exploração sexual de menores. “É uma epidemia silenciosa e com uma dimensão arrebatadora, porque essa violência está instaurada em todas as famílias, em quase todas as casas e, ao mesmo tempo, é muito silenciada. Há uma naturalização disso”, acrescenta a cineasta Adriana Yañez.

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Ambas se uniram para realizar o documentário Um crime entre nós, produzido pela Maria Farinha Filmes e disponível em plataformas de streaming, que escancara as causas que perpetuam essa violência na sociedade brasileira. Para além do relato de vítimas e de traumas individuais, o filme, gravado entre 2018 e 2019, conta com informações e opiniões de educadores, sociólogos, psicólogos e ativistas, como a youtuber Jout Jout, o médico Drauzio Varella, o apresentador Luciano Huck e Gail Dines, pesquisadora inglesa de pornografia.

Abordando questões de gênero, impunidade, o consumo de pornografia, o ensino da educação sexual nas escolas e discussões sobre masculinidade, uma fala em comum entre os participantes do documentário é sobre o desinteresse da sociedade em sequer conversar sobre o assunto da violência sexual infantil. sequer falar sobre o assunto. “É uma coisa tão horrível que causa um distanciamento, as pessoas preferem não olhar, não saber que aquilo acontece. É uma forma de não participar daquela brutalidade”, diz Drauzio Varella.

Mas foi precisamente dessa dificuldade de articular em palavras uma realidade tão cruel que nasceu Um crime entre nós. “Queremos colocar esse tema na pauta, porque, enquanto ele não é falado, não vira uma questão. Temos que pressionar as autoridades para políticas públicas. O filme nasce para ser instrumento de provocação e debate sobre isso”, afirma Adriana.

Um ponto crucial da obra é a diferença entre o abuso, que geralmente acontece em casa, e a exploração sexual, quando a vítima é violentada em uma troca mercantil, seja dinheiro, comida, roupa ou até um brinquedo. Por vezes, o primeiro leva à segunda, como mostra a primeira história contada no filme: uma mulher anônima relata ter sofrido agressões do padrasto a partir dos cinco anos. “Muitas noites, sentia que ele me tocava. A história foi se repetindo mais violenta”, conta. Ao informar à mãe do que acontecia, ela não acreditou. A menina, então, fugiu para a rua, onde conheceu a exploração sexual, que, no Brasil, soma 500.000 casos por ano, de acordo com a Childhood Pela Proteção da Infância.

“Das violências, essa é a mais invisibilizada e também a mais naturalizada. A menina sequer é vista como vítima”, lamenta Luciana. Uma cena do documentário é emblemática nesse sentido. Em um bar de um bairro popular de Manaus, Luciano Huck pergunta aos homens presentes se uma menina de 11 anos com uma blusa e shorts curtos é culpada se sofrer uma violência sexual. Todos dizem que sim.

Um assunto em segundo plano

As realizadoras do documentário querem ampliar o debate na esfera política, levá-lo às escolas e aos lugares mais vulneráveis. Através da Lei Rouanet, Luciana Temer conseguiu aprovar o projeto de colocar o filme em um caminhão para rodar o interior do Brasil. “Sabemos que, quanto mais distante dos grandes centros urbanos, maiores as violações de direitos. Vamos começar pelo sertão baiano, assim que a pandemia passar”, conta ela, que também enviou a obra a todos os senadores e deputados do Congresso Nacional. “Nossa esperança é de que algum secretário, algum assessor dessas pessoas preste atenção e veja a importância desse problema. O documentário tem o mérito de, mesmo tratando de um tema tão indigesto, fazer com que as pessoas saiam dele conectadas com o assunto e não afastadas dele”.

Perguntadas sobre os direitos das crianças e adolescentes e no combate à violência sexual em um Governo eleito com um discurso de defesa dos valores familiares, Adriana e Luciana reconhecem que há pelo menos coerência no discurso de figuras como Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que frequentemente pauta a proteção à infância. “O fato de Damares chamar a atenção para isso, ainda que de forma equivocada, já ajuda. O Ministério dela tem feito um esforço de aprimorar o canal de denúncias, o Disque 100, mas ainda não vimos o resultado”, diz Luciana.

Adriana pondera, no entanto, que é difícil construir avanços em um contexto autoritário. “Ela fala, sim, a favor das crianças e adolescentes, mas, ao mesmo tempo, está em um Governo que prega a exaltação da brutalidade, da violência, o que é totalmente contraditório às políticas públicas de saúde e educação necessárias para combater o problema”.

Nos últimos anos, movimentos feministas têm crescido e tomado as ruas, no Brasil e no mundo, avançando na conquista de direitos relativos à igualdade de gênero. A bandeira da luta contra a violência sexual infantil, no entanto, parece ficar em segundo plano. Por vezes, ela é ate inexistente. “Isso acontece porque é uma realidade muito cruel, é muito difícil, ninguém quer olhar para isso. E as crianças são uma minoria que não pode ir às ruas, elas não podem lutar por elas mesmas, precisam dos adultos”, explica Adriana. “É muito mais difícil empoderar uma mulher que, enquanto menina, sofreu todo tipo de violência sem ninguém olhar para ela. Precisamos que esses movimentos olhem para trás e peguem essa menina pela mão”, diz Luciana.

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