Brasil adoece enquanto Bolsonaro releva a pandemia e se mantém em eterno palanque eleitoral

Presidente continua em ritmo de campanha eleitoral, com culto à cloroquina e um staff de ministros e servidores contaminados no Planalto, enquanto falar em seguir em frente “para se safar deste problema”

Bolsonaro segura uma banana enquanto fala com apoiadores no Palácio da Alvorada, em 24 de julho.Eraldo Peres (AP)

O presidente Jair Bolsonaro não faltou ao seu estilo seco para falar da iminência das 100.000 vidas perdidas para a pandemia do coronavírus. Em live, já na quinta-feira, mencionou o número assombroso já se descolando dele. “A gente lamenta todas as mortes. Já está chegando ao número de 100.000, talvez hoje (em referência à quinta, quando somavam oficialmente 98.493 vidas perdidas). Vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar deste problema”, disse ele, ao lado do general Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde. Ao invés de usar a pandemia de covid-19 para mostrar alguma capacidade de liderar e unificar um país Bolsonaro (sem partido), continua a se expressar com palavras duras, como “se safar”.

Depois de um ano e sete meses de Governo, o presidente só faz manter-se fiel ao seu personagem em eterno ritmo de campanha eleitoral, rebatendo qualquer possibilidade de crítica. Desde que o primeiro caso foi registrado no Brasil, em fevereiro, o mandatário oscilou discursos autoritários e negacionistas com raríssimos momentos de serenidade. Seu principal objetivo tem sido o de retirar de si sua responsabilidade na crise, transferi-la para governadores, prefeitos e para outras instituições, como o Supremo Tribunal Federal. Além disso, faz um movimento de tensionamento constante com os poderes, promove medicamento sem eficácia comprovada no combate à doença – a cloroquina –, debocha do distanciamento social e surfa na onda de aprovação entre os mais pobres trazida pelo auxílio emergencial de 600 reais.

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Enquanto os números de infectados no Brasil dispararam — mais de 2,9 milhões de pessoas têm ou já tiveram a doença, segundo dados oficiais – o presidente testemunhou seu entorno adoecer. O Palácio do Planalto passou a ser chamado de “covidário”. Dos 3.400 servidores que frequentam a sede presidencial, 178 tiveram covid-19 até 31 de julho passado. Dos 23 ministros de Bolsonaro, 8 anunciaram terem sido infectados. Os mais recentes foram Jorge Oliveira (Secretaria-Geral) e Walter Braga Netto (Casa Civil). Ambos têm gabinete no Planalto. Todos na sequência de Bolsonaro, que confirmou ter contraído o vírus no dia 7 de julho. A primeira-dama, Michelle Bolsonaro, também teve a doença.

Se fosse um país, o Planalto teria a taxa de 5.235 contaminados para cada 100.000 habitantes. A taxa do Brasil é de 1.374. “Durante esse processo, o presidente não teve o interesse ou a capacidade de assumir que errou nesse negacionismo constante e teve de construir uma narrativa política de que foi impedido de atuar pelas instituições”, diz o cientista político e advogado Valdir Pucci, diretor da Faculdade Republicana. Contra Bolsonaro, há acusações no Tribunal Penal Internacional de Haia, queixas no STF e ao menos 40 pedidos de impeachment na Câmara dos Deputados por causa de sua postura omissa na pandemia de covid-19.

Nem mesmo ter sido infectado pelo novo coronavírus fez com que o presidente arrefecesse a temperatura de seus discursos radicais. Em apenas uma ocasião desde que anunciou ter se curado da doença, em 25 de julho, Bolsonaro disse a apoiadores no Palácio da Alvorada que deveria manter distância deles e seguir usando máscara facial. Dias depois, entretanto, viajou para o Nordeste e para o Sul do país para inaugurar obras e promover aglomerações. Na ida a Bagé (RS), disparou mais uma de suas frases cortantes. Perguntado se havia negligenciado a doença, afirmou: “Eu nunca negligenciei. Eu sabia que um dia ia pegar. Infelizmente, acho que quase todos vocês vão pegar um dia. Tem medo do quê? Enfrenta”. Suas frases de efeito para minimizar a doença ganharam as manchetes no mundo. “Não sou coveiro”, em abril quando o país ia em mais de 2.000 mil mortes. “E daí?”, quando o país superou 5.000 mortos no final daquele mesmo mês, e o famoso “é só uma gripezinha”, um mês antes.

Bolsonaro ficou preso à narrativa do enfrentamento e assim deve ficar até o fim de sua gestão, não apenas por causa da pandemia. “A estratégia política do Bolsonaro comporta a ideia de ter uma campanha eleitoral permanente. É parte do DNA do bolsonarismo. Principalmente para ter seus apoiadores fervorosos cada vez mais próximos”, diz o cientista político Leandro Consentino, professor do Insper.

Não só o presidente, mas sua rede de apoio, e até uma fração da classe médica se lançaram a questionar a ciência, confundindo o Brasil num momento de fragilidade diante da doença, com a economia parada, e um futuro incerto. “Bolsonaro testa os limites das instituições e da sociedade civil”, diz o historiador Odilon Caldeira, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e membro do Observatório da Extrema Direita. “Quando ele passa a radicalizar, ele tenta buscar um processo de naturalização de seu discurso”, completa.

Nessa cruzada, instalou interinamente o general Eduardo Pazuello no cargo de ministro da Saúde, depois da queda de braço com dois ministros médicos, que deixaram o posto por discordar dos protocolos de recomendação para o uso da hidroxicloroquina, como queria Bolsonaro, para o tratamento de pacientes com covid-19. O mandato de Pazuello, que deveria ser tampão, já chega aos três meses. Tempo suficiente para acomodar as demandas do presidente, como o próprio endosso à cloroquina, mesmo sem comprovação científica. Em suas aparições públicas, Bolsonaro não perde a chance de erguer uma caixinha do remédio para seus seguidores e até para as emas que vivem no Palácio da Alvorada. Incensa também o uso do vermífugo Ivermectina, outro medicamento sem comprovação de eficácia para os efeitos da covid-19.

Enquanto investe no marketing do confronto a quem o questiona, Bolsonaro abaixou a guarda em um campo sensível para os bolsonaristas radicais. Em sua relação com o Congresso Nacional durante a pandemia, o presidente fez acenos ao Centrão, um grupo fisiológico de partidos de centro direita. Começou a povoar os segundo e terceiro escalões do Governo com indicados por esse grupo de olho em dois movimentos. O primeiro é de impedir que prospere um dos mais de 40 pedidos de impeachment contra ele que tramitam na Câmara. O segundo, tentar preparar o terreno para a eleição da Mesa Diretora da Casa que definirá como será a segunda metade do mandato de Bolsonaro.

Apesar de estar distribuindo cargos, Bolsonaro não tem se deparado com dias fáceis no Legislativo. A sua base de apoio ainda não está organizada. Uma prova disso é que estão em tramitação no Legislativo, 43 vetos presidenciais, sendo que 19 deles se referem a leis ou trechos de leis voltadas para ajudar no combate da crise sanitária provocada pela covid-19. Entre esses vetos, que é quando um governante não concorda com o que foi aprovado pelos congressistas, estão um que trata da concessão de auxílio emergencial em dobro para mães que criam sozinhas seus filhos e outro que impede novas inscrições nos cadastros de empresas de análises de crédito enquanto a calamidade pública estiver vigente.

Entre quem acompanha o dia a dia do Congresso Nacional, a sensação é que o presidente está mais preocupado em garantir caixa para alçar sua popularidade acima dos 30% e reforçar seu discurso para a longínqua campanha eleitoral de 2022 do que em amenizar os efeitos humanos da pandemia. Uma das estratégias seria estourar os gastos públicos, confrontando o seu ministro da Economia, Paulo Guedes, para garantir o programa que sucederá o Bolsa Família, o Renda Brasil.

Após pagar o auxílio emergencial aprovado pelo Congresso de 600 reais até setembro, o presidente pretende estendê-lo a dezembro, ainda que em um valor inferior – de 200 reais. Uma alternativa para garantir mais recursos é aprovar a reforma tributária que enviou no fim de julho, e que sugere a recriação de um novo imposto. “A reforma tributária do Governo é uma simplificação malfeita com a volta da CPMF. A justificativa é a de irrigar os cofres para garantir o Renda Brasil e anabolizar a sua reeleição”, diz o professor Consentino, do Insper.

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