Maioria do STF dá sinal verde ao inquérito das ‘fake news’ e eleva pressão sobre Bolsonaro
Presidente diz que ministros da Corte "estão abusando" e, sem citá-los, fala em "emboscada". Investigação encontrou ameaça de estupro contra filhas de ministros e planos de atentado
O Supremo Tribunal Federal caminha para um consenso em torno da legalidade do inquérito das fake news, o principal instrumento da Corte não só contra os ataques proferidos contra seus membros nas redes sociais como também contra o histrionismo do presidente Jair Bolsonaro e de seus apoiadores. Nesta quarta-feira, sete dos onze ministros do STF seguiram o relator do processo, Edson Fachin, e concordaram com a tese de que a investigação, considerada controversa por ter sido iniciada pela própria Corte e por não ter participação do Ministério Público, é válida e tem de continuar. Assim, o placar está em oito votos pela rejeição de um pedido do partido Rede Sustentabilidade que tinha como objetivo engavetar a apuração. Faltam os votos dos ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Antonio Dias Toffoli, que devem ser dados em uma sessão extraordinária na tarde desta quinta-feira.
A decisão e os discursos dos magistrados durante a tarde foram uma resposta não só a quem ameaça magistrados nas redes sociais (e, como revelado nesta quarta-feira, na deep web), mas também às investidas de Bolsonaro e de seus principais assessores contra a Corte. O presidente tem estimulado a retórica de sua base radical que clama pelo fechamento do tribunal. Também subiu o tom na sexta-feira passada, quando fez assinar, com o ministro da Defesa, uma nota que diz que as Forças Armadas não obedecerão “ordens absurdas” para que ele saia do Planalto —uma expressão suficientemente aberta para conter não só sentenças do Supremo contra ele como as do Tribunal Superior Eleitoral, que também julga processos contra a chapa presidencial. Bolsonaro tampouco condenou o coreografado ataque com fogos de artifício à sede do STF feito por seus apoiadores, no sábado.
A sessão desta quarta não foi a única resposta da Corte. Na terça-feira, 11 parlamentares bolsonaristas tiveram seus sigilos bancário quebrados por suspeita de financiarem atos antidemocráticos que pediam o fechamento do Legislativo e do Judiciário. Trata-se de um outro inquérito potencialmente explosivo que apura a realização das manifestações contra a democracia, iniciado a pedido da Procuradoria Geral da República. Considerando os dois inquéritos, o da fake news e o sobre atos antidemocracia, o Supremo já emitiu 51 mandados de busca e apreensão contra aliados do presidente. Mais importante: há a intenção de levar o que for encontrado na apuração sobre fake news para municiar ação que apura desvios e suposto uso da máquina de desinformação sobre a campanha presidencial de 2018 —algo que pode custar o cargo ao mandatário e ao vice.
Tampouco Bolsonaro dá mostras de recuar na escalada. Em sua conta no Twitter, ele afirmou que tomaria “todas as medidas legais possíveis para proteger a Constituição e a liberdade dos brasileiros”. Na manhã de quarta-feira, a apoiadores que o aguardavam na entrada do Palácio da Alvorada, disse que tudo seria colocado no lugar. “Eu não vou ser o primeiro a chutar o pau da barraca. Eles estão abusando. Isso está a olhos vistos. O ocorrido no dia de ontem, quebrando sigilo de parlamentares, não tem história nenhuma vista em uma democracia por mais frágil que ela seja. Está chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar”. À noite, voltou à carga, “Têm abusos acontecendo e conseguem acusar a mim ainda. Mas importante que as mídias sociais hoje em dia mostram a verdade”, disse. “É igual uma emboscada”, seguiu.
Mas, apesar das frases fortes, o presidente tem pouco a fazer ante a barreira de unanimidade que a Corte se prepara para construir em torno do procedimento. Em mais de uma ocasião, Bolsonaro disse que esse inquérito era ilegal. Não estava sozinho, tanto é que a Rede, que lhe faz oposição, é autora da ação que o questiona. Juristas veem problemas de origem no procedimento, já que ele tem sido conduzido todo pelo STF e por policiais civis e federais que estão lotados no Judiciário, sem que seja de inteiro conhecimento da Procuradoria-Geral da República. Outro problema é sua amplitude (há um sem número de investigados) e o fato de os magistrados conduzirem investigações e se preparem para julgar um tema em que eles próprios são vítimas. A antiga chefe do órgão, Raquel Dodge, pediu o seu arquivamento duas vezes. O atual procurador-geral, Augusto Aras, defendeu sua suspensão até que a íntegra das apurações seja de seu conhecimento. Um pedido que, pela votação desta quarta, não será aceito.
Do momento em que o inquérito das fake news surgiu até agora, porém, o clima mudou. Há a defesa que, mesmo como problemas, o instrumento é o único capaz de dar um freio em Bolsonaro sem depender de Aras, o PGR indicado por ele na semana passada. Neste sentido, a sessão virtual do Supremo também foi cheia de mensagens para sustentar que, ao contrário do que o bolsonarismo defende, o inquérito não tem como objetivo cercear a liberdade de expressão, mas sim apurar ameaças concretas.
Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes leu relatos colhidos por ele no inquérito que mostram as ameaças diretas contra os magistrados. Uma dessas ameaças teria sido proferida por uma advogada do Rio Grande do Sul que teria dito em uma rede social: “Que estuprem e matem as filhas dos ordinários ministros do Supremo Tribunal Federal”. Em tom indignado, Moraes afirmou que isso não se caracteriza liberdade de opinião. “Em nenhum lugar do mundo isso é liberdade de expressão. Isso é bandidagem, é criminalidade”.
Conforme Moraes, a investigação das fake news já resultou em 72 inquéritos que foram enviados à primeira instância, onde cidadãos sem prerrogativa de foro – ou seja, que não são parlamentares, presidente ou ministros – são processados. “Nenhum trata de liberdade de expressão. Nenhum trata de crítica nem de xingamentos. Tratam de ameaças, de atentados, da tentativa de coação aos ministros do Supremo”, afirmou. A apuração iniciou-se em março de 2019 por iniciativa do presidente da Corte, Dias Toffoli. Dela já resultaram censura da revista online Crusoé e a apreensão de arma de fogo do ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, por exemplo.
Ainda conforme Moraes, graças a esse inquérito e ao auxílio do Ministério Público de São Paulo, foi possível descobrir planos de ataque ao Supremo e uma tentativa de atentado a um ministro da Corte com o lançamento de um artefato explosivo em sua casa. Além disso, também se constataram ameaças feitas por meio de deep web, que a promotoria paulista encontrou enquanto investigava o atentado na escola de Suzano, ocorrido em 2019. O ministro leu uma mensagem encontrada no lado sombrio da rede: “Já temos em poder armas e munição de grosso calibre. Escondam seus filhos e parentes bem escondidos na Europa, porque aqui você não vai ter onde se esconder. Um inferno e a revolta vão cair sobre a sua cabeça. Faremos um tribunal em praça pública com direito a fuzilamento de todos os parasitas e vagabundos estatais.” Em outro momento, o ministro menciona ainda que na deep web foi encontrado “detalhado plano contra um ministro do STF com horário de viagens, voos, rotina que fazia entre Brasília e SP”, que também teria sido abortado pela atuação dos promotores paulistas.
Os recados nos votos
Em seu voto no julgamento desta quarta-feira, o ministro Roberto Barroso destacou que a democracia tem de frear os discursos de ódio. “Há precedentes de grave erosão democrática no mundo contemporâneo, pela incapacidade muitas vezes de as instituições reagirem. Prestando atenção temos sido capazes de evitar que trilha assemelhada seja percorrida entre nós”, afirmou.
A ministra Rosa Weber diz que o tema dificilmente será esgotado nesse julgamento. “Constatar que a desinformação divulgada em larga escala passou a influenciar diretamente as escolhas da sociedade nos mais variados temas, produz um choque de realidade sobre a dimensão e a complexidade do problema que se tem pela frente”. Enquanto que o ministro Luiz Fux, vice-presidente da Corte, disse que o objetivo dessa investigação é “matar no nascedouro esses atos abomináveis que vêm sendo praticados contra o Supremo Tribunal Federal”.
Em seu voto, a ministra Cármen Lúcia se queixou da formação de grupos para atacar a democracia. “Milícias e organizações criminosas formadas para estilhaçar o sistema democrático não têm espaço nem tutela no direito constitucional vigente numa democracia”. No mesmo tom seguiu o ministro Ricardo Lewandovski. “As redes sociais não veiculam apenas manifestações, reflexões ou críticas, mas dão curso a mentiras, ameaças e ofensas, sobretudo a ataques criminosos aos membros desta Suprema Corte e de outros poderes”.
Conhecido por seus discursos e votos críticos à Procuradoria-geral, o ministro Gilmar Mendes não perdeu a oportunidade de mantê-la no alvo. “Embora a Procuradoria-Geral da República esteja reivindicando o protagonismo sobre a apuração dos fatos do inquérito, é importante destacar que o MPF, em vários casos de ataques sofridos pelo tribunal, não adotou providências cabíveis”, criticou Mendes.