Provocações à China geram apreensão em plena pandemia e podem cobrar ‘desconto’ em exportações do Brasil
Desgaste pesa na hora de fechar novos negócios com chineses, alerta associação de exportadores. Governadores vivem apreensão de entrega de equipamentos médicos para coronavírus
A diplomacia entre o Brasil e a China ganhou inédito tom ríspido, apesar do status privilegiado do país asiático de principal parceiro comercial do país. Num momento em que o mundo passou a depender dos chineses para adquirir equipamentos de saúde que definem a vida ou a morte de pessoas em plena pandemia de coronavírus, investidas de integrantes do Governo Bolsonaro contra os chineses ganharam peso desproporcional. Enquanto o ministro da Saúde, Henrique Mandetta, saudava a importância da relação entre os dois países para o combate à Covid-19, outros atores no Brasil se esforçavam para aplacar os estragos de um tuíte do ministro de Educação, Abraham Weintraub, que insinuou publicamente que os chineses estão faturando com a pandemia. O comentário tensionou o diálogo com chineses e trouxe apreensão às empresas e governadores brasileiros que negociam com eles e esperam para as próximas semanas entregas de equipamentos comprados da China para lidar com o avanço da doença.
“Geopoliticamente, quem podelá sail foltalecido? Em telmos lelativos dessa clise mundial?”, postou Weintraub no último sábado (4), reproduzindo um quadrinho da Turma da Mônica que tinha a China como cenário. A ironia reproduzia o jeito de falar do personagem Cebolinha, que troca o R pelo L, mas também, a maneira preconceituosa como alguns retratam o modo de falar dos chineses no Brasil.
O tuíte do titular da pasta de Educação veio marcar a segunda saia justa do Governo do presidente Jair Bolsonaro com a China, menos de 20 dias depois da primeira, protagonizada pelo deputado Eduardo Bolsonaro. No dia 18 de março o filho do presidente gerou um conflito barulhento, quando partilhou um comentário nas redes sociais que culpava a China pela propagação do coronavírus. Foi um alvoroço que levou a um bate boca público com o embaixador chinês, Yang Wanming, nas redes sociais, apaziguado por uma chamada do presidente Jair Bolsonaro ao presidente Xi Jinping.
No episódio desta semana, Weintraub apagou o comentário, mas o desconforto ficou. A embaixada novamente fez um pedido público de desculpas com carta aberta nas redes sociais, colocando o Governo Bolsonaro na berlinda outra vez. “Na última crise criou-se uma hostilidade, resolvida pelo presidente. Agora, de novo. Isso desgasta qualquer relacionamento”, diz Charles Tang, presidente da Câmara de Comércio Brasil China, que há 30 anos trabalha para construir laços entre os dois países. “Vai chegar um momento em que apagar um incêndio fica mais difícil”, observa.
O fogo não chega ao ponto de queimar laços tão estreitos entre o Brasil e a China hoje, cujas transações comerciais superaram os 65 bilhões de dólares em 2019 [incluído Hong Kong e Macau]. No primeiro trimestre deste ano, ao menos 25% das exportações brasileiras seguiram para o mercado chinês —o dobro do exportado para os Estados Unidos— , de soja a petróleo. Mas o desgaste registrado por esses torpedos inadvertidos de integrantes do Governo Bolsonaro pode, em última análise, contaminar as trocas comerciais. “A China fica na posição de pedir descontos nas compras do Brasil como pedido de desculpa”, diz José Antônio Castro, presidente da Associação de Exportadores do Brasil. “Em nenhuma hipótese [esses ataques] ajudam o Brasil. Uma agressão gratuita, sem mais nem menos”, completa.
Castro lembra que o Brasil é um dos maiores produtores de soja, junto com os Estados Unidos, quando a China é a maior compradora da commodity do mundo. No ano passado, norte-americanos e chineses firmaram uma trégua na guerra comercial incentivada pelo presidente Donald Trump, o que levou a um acordo de 200 bilhões de dólares que beneficiou a compra de soja dos EUA. Não houve prejuízo para o Brasil, por ora, mas se o país não perde também não ganha. Segundo Charles Tang, a China continuará sendo forte compradora do Brasil, mas se não comprar menos, corre o risco de “deixar de ampliar a compra”.
É um mau sinal para um mundo que espera a recessão ou depressão econômica pós-pandemia, quando todo ponto ganho no xadrez comercial valerá ouro. A curto prazo, no entanto, não há efeitos e o Brasil se beneficia de uma recuperação chinesa depois do peso que a pandemia teve naquele país. Segundo Larissa Waschholz, que responde pelo núcleo China no Ministério da Agricultura, o gigante asiático começou a demandar mais produtos do Brasil e isso já se sente nas exportações de março. “Quando pensamos no pós-crise, temos na China o grande parceiro para a recuperação”, diz ela.
Seu otimismo, porém, contrasta com a apreensão de outros atores do setor que se preocupam com os símbolos que a China valoriza nas relações comerciais, como mostrou a nota da embaixada chinesa após a provocação do ministro da Educação. “Tais declarações são completamente absurdas e desprezíveis, que têm cunho fortemente racista e objetivos indizíveis, tendo causado influências negativas no desenvolvimento saudável das relações bilaterais China-Brasil”, diz em nota.
As palavras da embaixada soam mais fortes em tempos de pandemia, quando os chineses concentram 95% das exportações de equipamentos médicos, como ressaltou o ministro Mandetta recentemente. No Pará, o Governo de Helder Barbalho (MDB) pagou 48 milhões de reais por 400 conjuntos de Unidade de Terapia Intensiva (UTIs), entre eles respiradores artificiais, que devem ser instalados em ao menos quatro hospitais em regiões estratégicas. A previsão é que o equipamento seja despachado da China no próximo dia 15. O clima é de expectativa entre as autoridades locais. “Até o momento não tivemos nenhuma sinalização negativa”, disse o governador ao EL PAÍS.
No fim da semana passada, nove governadores do Nordeste que haviam encomendado 600 respiradores para vítimas de coronavírus sentiram na pele os efeitos da disputa feroz por equipamentos que a China está vendendo. Os respiradores acabaram retidos em uma escala em Miami, nos Estados Unidos. O custo da encomenda era de 42 milhões de reais, mas o dinheiro não chegou a ser pago. A suspeita entre os governadores do Nordeste é que a carga tenha sido oferecida a um preço mais alto para os Estados Unidos, que estão em um estágio mais grave da pandemia, e também tem mais recursos para pagar do que governos locais do Brasil.
O governador do Piauí, Wellington Dias (PT), também continua à espera de 300.000 testes comprados de uma empresa chinesa ao custo de 20 milhões de reais. Dias segue o périplo dos gestores públicos diante da pandemia. Desde o início da crise no Brasil, em fevereiro, o Piauí, um Estado com 3,2 milhões de habitantes, só testou cerca de 800 pacientes com suspeita da doença. Os dados do Ministério da Saúde mostram que eles tiveram 31 casos confirmados e 5 mortes em decorrência da Covid-19.
Charles Tang, da Câmara de Comércio e Indústria Brasil China, lembra que os chineses estão ajudando 82 países, não só com equipamentos, como também com a experiência em controlar as consequências da pandemia. “Já levaram pessoal médico para a Itália, Venezuela e Espanha, e está ajudando o Governo norte-americano”, conta. “O Brasil deveria demonstrar de modo mais inteligente a amizade entre os dois países e contar com colaboração solidariedade chinesa. Até os Estados Unidos estão fazendo isso”, completa Tang.
Mas sinais solidários já foram emitidos. Nesta terça-feira, infectologistas de 12 Estados e do Ministério da Saúde participaram de uma videoconferência para discutir procedimentos no tratamento de pacientes. O encontro foi intermediado pela embaixada da China e pelo ministro Luiz Henrique Mandetta. Houve ainda doações no mês passado da gigante de tecnologia chinesa Huawei ao governo do Distrito Federal. Foram 12.000 máscaras cirúrgicas e um software que tem sido usado para acelerar a análise de tomografias. “Com esse software em dois minutos é possível ter o resultado de uma tomografia, um exame que ajuda a saber qual é gravidade da doença”, afirmou a chefe do escritório de Assuntos Internacionais do Distrito Federal, Renata Zuquim.
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